POR QUE LER OS CLÁSSICOS? - ÍTALO CALVINO


POR QUE LER OS CLÁSSICOS? (livro)
por Rômulo Giácome de Oliveira Fernandes

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. 9ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

O que podemos dizer quando fazemos uma resenha de um livro de resenhas? Parafrasear o método e técnica de análise? Parafrasear as idéias discorridas a partir de uma leitura experiente dos textos visados? Ou simplesmente alimentar o nosso gosto e curiosidade pela leitura? A terceira alternativa é a mais vibrante. Calvino teoriza e analisa com leituras interessantes grandes clássicos da cultura mundial, tanto do ocidente quanto do oriente, apresentando-as sobre um enfoque do “novo” e do “curioso” aperfeiçoando a perspectiva do fantástico tanto no ocidente quanto no oriente, apresendo-as sobre um enfoque estético como elemento maior de toda a literatura.


Como bem diz Ítalo Calvino (1991), um clássico é sempre uma obra que nunca ninguém está lendo, e sim re-lendo; faz parte da nossa formação intelectual uma antologia variada de grandes clássicos, obras que marcam uma época e que aceitam ser objeto de dissecação das mais variadas formas de crítica: sociológica, psicológica, psicanalítica, etc. Falar sobre um clássico é antes de tudo estabelecer um critério para caracterizar uma obra como tal; uma das grandes marcas das obras clássicas é a atemporalidade, ou seja, esta universalidade que lhe é própria, marcada e determinada por falar de temas que não se esgotam e nunca são datados ou remarcados, sendo assim, não “esfriam”. Por outro lado, como podemos chegar a um clássico pela sua linguagem, pelo seu campo semiótico de representação sem perceber sua literariedade como marca fundamental, seja na inesgotável riqueza de conteúdos possíveis através do arranjo de signos, seja pela possibilidade de encantar e tornar grande qualquer coisa que o discurso literário toque, recriando os mistérios que nos aprazem e nos fazem ir além do padrão. Pensar nos clássicos é de certa medida lembrar daquelas leituras que nos marcaram, que fazem parte da nossa história intelectual, demarcando os momentos e situações que fizeram dos textos, marcos vividos. Lembro-me da proeza de ler a trilogia de Machado de Assis (memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro) com uma certa sensação ritual de respeito e devoção que devemos ter a um clássico. Diante deste, nada se discute; nem os motivos que nos levaram à leitura, nem a função desta. Um clássico se completa por si mesmo. Mas nada pode ser mais indescritível que estar defronte a baluartes da crítica literária universal, como uma Madame Bovary (Flaubert) ou a Mulher de Trinta Anos (Balzac). Leituras que provocam a experiência, que clamam pela atenção e justificam seus argumentos. De um modo geral, enquanto crítico literário, não posso alegar que minha história de leitura seja um liame de categorização para um clássico. Por outro lado, alguns critérios artísticos, semióticos e filosóficos me fazem pensar em uma lista de obras brasileiras que realmente são clássicas. (naquela limitação essencial que me permite a ausência de várias leituras).
Um dos elementos primordiais a um clássico é sua existência coletiva enquanto objeto de crítica; esta força positiva as vezes e destrutiva em outros momentos, é salutar para a formação de um clássico. O acolhimento da crítica, somado a um atencioso mercado editorial com sucesso de público é um primeiro patamar de um clássico.
Um outro critério “clássico” de existência á a universalidade, já citada acima, e reforçada como marca em espiral de discutir “os tempos” em qualquer que seja este tempo. Talvez uma obra clássica tenha tido o privilégio de trafegar em um tempo paralelo a este, em um tempo de catarse absoluta, de depuração, onde as horas não passam e a experiência é algo fixo e uno, o máximo e o ápice de todas as outras experiências. A obra clássica nos olha de fora, é uma perspectiva exterior, de uma outra dimensão, que pode perceber e afirmar com propósito. A obra de Shakespeare entende o drama humano como se não estivesse nele, e nesta isenção, o júri do homem é sua criação, que autônoma, no espia e avalia, sentenciando o fim comum.
Por fim, o gênero narrativo é escolhido para este propósito por ser mais uno e centrado sobre um começo, meio e fim do que a própria poesia. Não poderíamos afirmar que a obra de Drummond esteja centrada sobre um poema; mas podemos afirmar que Machado pode ter escrito apenas uma obra clássica.
Bem, sinteticamente segue uma pequena lista e descrição dos motivos da classificação.

Dom Casmurro. (Machado de Assis) Tudo o que for falado sobre esta obra é redundante. Já a analisaram por dezenas de aspectos e ela ainda consegue manter-se viva e pulsante. A técnica realista evoluída com laivos de profundidade da herança russa, perpassam uma universalidade impar de discussões e provocações que esta obra engendra. Provocante e insinuante, de uma sensualidade sutil e desavergonhada. Um clássico.

Vidas Secas. (Graciliano Ramos) Muito se tem dito sobre o regionalismo ser um gênero no Brasil, e não um período ou escola. Desapegado ao tempo, amarrado ao espaço, e filiado ao filão da literatura que mantém comprimida dentro do peito o grito, o regionalismo pode ser totalmente condensado em Vidas Secas. O que existe de mais seco, da tessitura narrativa mais singular e bem acabada, dos desvios narratológicos e seus recursos mais bem empregados, da força das personagens mais poderosas e singulares, faz de Vidas Secas um elo entre toda a produção antes de 1950. A profundidade do tema sertanejo é quase a categorização do ser humano em sua totalidade histórica. Um clássico.

Grande Sertão Veredas. Guimarães Rosa publica em 1956 uma obra prima da literatura brasileira e universal. Completa em todos os níveis, desde a efabulação composta de criações imagéticas, contextuais e espaciais de primeira grandeza, como a própria trama, tracejada no percurso do sertanejo e seus códigos de valores, sua conduta e a forma singular de ver o mundo. O enredo possibilita a incursão nas aventuras de um bando liderado por Medeiro Vaz contra Ricardão e Demóstenes, os traidores que mataram o grande líder Joca Ramiro e fogem para a Bahia e são o grande objetivo do grupo onde encontra-se Riobaldo. Este, narrador em primeira pessoa, observador e testemunha, acompanha extrinsecamente e intrinsecamente a trama, fomentando uma viagem no interior do cangaço mineiro, vivenciando como leitor as intempéries psicológicas deste mundo regional. Balizado em personagens fortes, como Zé Bebelo, antigo inimigo de Joca Ramiro, defensor do governo e que é julgado justamente e volta para vingar-lhe, estes personagens, bastante retratados e caracterizados, pulsam autônomos na esfera narratológica para a vida e para a própria experiência existencial e simbólica do sertão. Além disso, um andrógino personagem, que marcadamente surge masculino e posteriormente feminino (Diadorim) irá reverter a noção de amor e sentimento em um mundo de rochas, seca e mandacarus. Os temas e as discussões povoadas em Rosa são do ponto vista filosóficas e antropológicas rasgos de profundidade na epiderme da existência social enquanto núcleo formador de um espécime humano. Sem sombra de dúvidas, a leitura de Grande Sertão Veredas é um mergulho em um mundo léxico e constituído com sólidas paredes regionais. Um clássico.

A Resenha
Muitos caminhos podem ser percorridos ao resenhar Calvino nesta obra Por que ler os clássicos. Podemos escolher o caminho da novidade, selecionando obras desconhecidas ao público leitor mediano, como Orlando o Furioso de Ariosto, exemplar clássico italiano que cultivava a modernidade dos sonetos e a vanguarda da narrativa épica clássica. Ou Gerolamo de Cardano, De consolatione, que segundo Calvino, pode ser a obra que Hamlet lê ao ter encontro com Polônio, e o mesmo lhe pergunta o que estais a ler e ele responde “palavras, palavras, palavras”, com ironia. Isto porque no ato seguinte Hamlet fala sobre o sonho, com aquela idéia de que o sonho mais doce é o mais profundo, referendando a morte, temas discutidos em De consolatione. Ainda outras obras desconhecidas do senso comum, O pasticciaccio de Carlo Emilio Gadda, Eugênio Motale, com o seu “Forse um marttino andando”. Poderíamos ainda escolher o caminho dos clássicos da narrativa realista em todas as suas matizes, como Dickens, Conrad, Pasternak, Hemingway, Ponge, Faubert, Tolstoi, Henry James e entrecruzando os fios da realidade e da imagem, costurar um diálogo entre formas fixas e soltas, demarcando a riqueza humana da literatura ocidental.
Calvino remonta na literatura nossa sede por ficção. Esta sede e fome pelos encantos do devir do sonho e do encantamento, faz coro com a construção medida, demarcada e sofisticada pela linguagem perfeita da literatura. Em Ovídio, Metamorfoses, segundo Calvino, as transformações do universo clássico, dos objetos, de Aracne em Aranha, depois de desafiar Minerva ao tecer temas das desventuras e orgias dos deuses no Olimpo, ou de Palas incitada por Apolo e Netuno, vão construindo uma narrativa forte, cinematográfica, onde cada cena estará completa de estímulos prontos a explodir na face do leitor. Esta rapidez descritiva e enunciativa mostra a força atual de Ovídio, até mesmo quando descreve o acidente do carro solar, destruído pelo raio de Júpiter. A cena é construída a partir do relato cinético do movimento do carro espatifando-se, até a descrição anatômica dos pedaços de gente expostos na rua. Ainda com esta sede de ficção e fantasia, um degrau a mais, Calvino aporta em sua análise Anábase de Xenofonte. Um épico às avessas, que mostra o movimento epopéico de um grupo de gregos, que em uma missão à Ásia Menor para combater o príncipe Artaxerxes II, são derrotados e sem líderes, mais de dez mil soldados estão no meio das linhas dos povos inimigos, tendo que voltar à sua pátria atravessando cidades de outros povos, levando consigo destruição, mulheres e saqueando. O detalhamento com que Xenofonte descreve toda a movimentação de guerra, da ausência de generais a líderes emergentes, das estratégias de guerras e reuniões marcadas em atas. Um monstruoso corpo de homens armados, que querem voltar para a casa em meio a neve, deserto e outras civilizações fazem de Anábase um clássico de guerra, uma obra prima que deve ser lida por aqueles que gostam do tema e também, principalmente, por aqueles que não gostam, uma vez que rememora a noção plena de união enquanto atributo de sobrevivência física e moral: física pois todos dependem de todos para manterem-se vivos; e moral pois a noção de pátria e identidade é montada a partir da conjunção entre eles, da noção de unidade e nação. Esta idéia de unidade grupal é acentuda quando da reiteração dada ao signo “gafanhotos” exposta por Calvino. Uma nuvem de gafanhotos em busca de um retorno e tentando manter uma integridade helênica dentro do barbarismo externo (outras civilizações) e o barbarismo existente dentro de cada soldado.
O capítulo intitulado Cyrano na Lua (pág. 96) Calvino brilhantemente contempla o maravilhoso mundo científico do renascimento, tempo onde princípios da incipiente física e astronomia se misturam aos elementos alquímicos e míticos de verdades ainda fabulares e lendárias. Este mundo precursor da ficção científica, antecipou uma série de elementos centrais deste tipo de narrativa. Como o astronauta que se livra da força da gravidade utilizando gotas de orvalho, que são atraídas para o sol possibilitando uma contra força. Do mesmo modo que vislumbrou os “livros sonoros”, onde se colocava uma agulha e o conteúdo era dito em uma boca de metal. Estas visões modernas e tecnológicas, são fundamentadas em princípios Lucrecianos de atomismo, como forma de entender o cosmo através de sua unidade, ou suas unidades nos quatro elementos de Empédocles. O que percebemos no clássico Histoire comique dês éats et empires de la lune, de Cyrano de Bergerac é uma necessidade de compreensão sistêmica no universo, esquivando-se da forma teocentrica do medieval, que apenas vai ser referendado no momento em que se satiramente desconstrói as noções de paraíso terrestre ou celestial. É o caso da teoria de Giordano Bruno, onde o cosmo é uma imensa cebola (metaforicamente) feito por camadas que brotam de um núcleo vital e essencial, que sendo unidade criogênica, é o sol, que emana o sal da vida. O enredo deste clássico narra a aventura de Cyrano rumo à lua, o que torna interessante entender os sistemas utilizados para cumprir tal empreitada. Enoch utiliza-se de dois vasos amarrados às suas axilas, que utilizados para sacrifícios, expurgam fumaças, lançando-o ao espaço; o profeta Elias usou uma embarcação de ferro, que lançada por uma bola imantada, foi arremessada pela forma de atração universal empreendida pelo sol. Já Cyrano fez uso de ungüentos de cérebros de animais, que segundo os mitos da época, eram sugados pela lua. Uma vez lá, descobre que é o paraíso terrestre, perdido no tempo. Cai sobre a árvore do pecado e amassa maçãs formando uma papa. A serpente do pecado, segundo narração do profeta Elias, foi introduzida dentro do homem, passando a ser o intestino, órgão que enrolado sobre ele mesmo, é responsável pelos impulsos e desejos primários na humanidade. Cyrano brinca que a serpente também passou a ficar no ventre do homem, que procura a mulher e cospe dentro dela, deixando-a inchada por nove meses. A inclinação do autor deste clássico em fecundar uma aproximação do amor divino a todos os seres, animais e vegetais, racionais e irracionais, contempla a noção de inteligência universal proposta pela estrutura inicial, de um mundo construído a partir de uma estrutura sistêmica, dotado de um todo muito além das filosofias, mas de uma concentração única de vida. Sem sombra de dúvida, o autor escreveu um um clássico renascentista, que segundo Calvino foi extremamente censurado e acima de tudo, um libertino de idéias e ações.
Uma questão sempre pautou minhas reflexões sobre Jorge Luís Borges. O mergulho em seu universo ficcional era precedido de uma imensa e criativa intelectualidade, que ítalo Calvino consagra como “... uma idéia de literatura como mundo construído e governado pelo intelecto” (pág 247). É como se fosse possível criar todo um cosmo literário a partir da criação, antepondo-se ao mundo caótico real da existência. No conjunto de referências da obra de Borges existe um espelho que reflete um outro mundo, não este ainda, mas um mundo do porvir. E esta peripécia artística tem a consagração estilística na escrita concisa, precisa e sucinta, o que Calvino classifica como economia expressiva, que difere de minimalismo. O mecanismo fundamental desta precisão colossal, que eleva sua arte a grandes patamares, segundo Calvino, situa-se no fato de que Borges parte de um livro maior, um livro grandioso, escrito em outra língua e por outro autor, e que ele, Borges, resume, simplifica, finge que remonta. Este efeito cria a ilusão da ficção sobre a ficção. Com sagacidade, a clássica obra O Aleph remonta esta prática na escrita, influenciando a literatura Italiana a partir da década de 50 e promovendo uma conexão intensa entre Borges e toda a trajetória literária da Itália.
Uma relação entre uma obra já escrita que é remontada a partir de outro texto (Borges), temos uma mesma estrutura de lâminas sobrepostas entre o lembrar e o esquecer que circula uma variável da obra Odisséia de Homero, resenhada de modo brilhante por Calvino (pág. 17). Calvino afirma que o mais importante em Ulisses é não esquecer de casa e de todas as suas coisas deixadas, e antes de tudo, perder o fio que leva a sua casa e ao seu mundo, pois é o eixo de sua sobrevivência. Tanto que Penélope tricota de dia e a noite desfia, o que denota indicialmente a necessidade do fio condutor, do eixo que liga os dois planos, o plano central da epopéia (social) com o plano final da odisséia (heróica).
Muito se pode discutir dos clássicos e da própria percepção de clássico envolta nos ramos teóricos da teoria literária e da tradição poética de séculos. Mas o que devemos entender, além da proposta desta obra necessária e intrigante, assim como estimuladora que é Por que Ler os Clássicos, é o universo humano que está escondido nas linhas e envolto nas imagens, diálogos, personagens e vivências experimentares que contemplamos e absorvemos nas obras mais importantes da literatura Universal. Universal porque contempla não qualitativamente um modo de escrever soberbo e único, mas porque sobeja a face cultural do homem em toda a sua diversidade. Ler os clássicos é poder partir rumo aos âmbitos mais intrigantes da língua, da cultura e do universo, interior e exterior da humanidade. Os sábios sabem reconhecer os clássicos e nós devemos ao menos tocar nesta sabedoria.

Comentários

Unknown disse…
Gostaria de parabenizá-lo pelo Blog, Rômulo.
De grande ajuda para os desejosos do conhecimento literário.

Sonia Palma
Teoliterias disse…
Obrigado pelo elogio e entre sempre que puder. abraços
Anônimo disse…
ótimo!