Disco – OTTO - HOJE ACORDEI DE SONHOS INTRANQUILOS

QUANDO PERDER É GANHAR!!
By Rômulo Giácome

O nordeste sempre construiu uma excelente veia poético / musical, cravando em belas melodias excelentes letras, tais quais algumas antológicas,
já enumeradas em nosso memorial coletivo: “Dia Branco”, de Geraldo Azevedo; “Avohai” de Zé Ramalho; exemplos só para lembrarmos do rol fascinante de composições que conseguem ampliar a excelência poética da canção brasileira, fornecendo subsídios culturais para perceber a riqueza nordestina. Em fases mais contemporâneas, avançando por sobre Geraldo Azevedo, Zé Ramalho, Alceu Valença e outros, caímos nas majestosas cânforas da geração Lenine, Chico Cézar e Zeca Balero. Nesta trinca de grandes poetas / músicos, Chico Cézar é com certeza um injustiçado, com uma produção desmedidamente mais profunda e completa que os outros dois. “Aos vivos” é uma obra prima de criação poética, de ladrilhar a palavra e encravá-la semioticamente em novos contextos. Neste cenário protéico de produção, erigido na década de 90 e início de 2000, uma lacuna se prestou neste momento até o presente (ontem) quando falamos de letras poéticas, ao contrário do ritmo e sua pesquisa, vertente verdejante na produção nortista. A presença forte da poesia de traços líricos / construídas na música popular brasileira feita no nordeste ficou novamente representada a partir deste disco do Otto “Hoje acordei de sonhos intranquilos”.
Um dos princípios da literariedade é o equilíbrio entre forma e conteúdo, projeção dos termos em inversões sintático / semânticas de modo a manter uma harmonia de sentido, e deslindramento de efeitos a partir do pulsar de uma construção (enunciado) poeticamente e milimetricamente levantado. Pequenos versos como “Há sempre um lado que pese / e outro que flutua”; esta preciosidade poética é a criteriosa elevação do equilíbrio enunciativo com força extremamente alegórica (a imagem da balança) que representa em seus pólos o desequilíbrio e a tensão fórica (flutua, feliz, êxtase) para a disfórica (peso, tristeza). Assim, projetado o simulacro poético dentro da realidade emotiva, temos a régua que mede as dores do perder e a virtude de ganhar; o maniqueísmo da relação, onde seu término exala uma vitória e uma derrota; a derrota é amargada pelo torpor da lembrança e sua dificuldade de extirpação “Dificilmente se arranca a lembrança / por isso da primeira vez dói”. O prisma do relacionamento findado, deixado de lado e as feridas amarguradas dão a tônica da letra desta canção “Crua”. Um eixo entre o sentimento a carne são implicitamente desenhados, quando da enunciação “tua pele é crua”. Esta acentuada referência à crueldade da pele torna simbiótica a fusão e profusão de sentidos entre a crueldade da pele, a crueldade do corpo e crueldade do desejo. O desejo não tem pena do sentimento. “Mas naquela noite que eu chamei você, fodia. Fodia”.
Otto constrói um percurso gerativo do ato findo da relação amorosa. O amor termina ou as marcas do amor mudam e ferem? A dor do término são confessadas e professadas de forma poética. Na canção “Leite derramado”, (aquele que não se pode chorar), Otto reinvindica seu quinhão profético “quando eu perdi você ganhei a aposta”; a imersão em um relacionamento profundo, denso e repleto de idealismo deixa o rastio de pólvora da profética visão que um dia pode acabar; nitidamente o eu persona duvida da sua condição de aceitação do término “quando eu saí da tua vida bati a porta / saí morrendo de medo do desejo de ficar”; o magnetismo do desejo é antagônico à vontade; “num dia assim calado você me mostrou a vida / e agora você vem dizer pra mim que é despedida”.
A musicalidade deste disco está repleta de referências múltiplas, não só vinculado ao binarismo e beat do disco anterior “
A sonoridade de “Janaína” está com um groove em baixa, tocado na batida de um chocalho extremamente brasileiro e de religiosidade afro nítida. De longe alguns metais que implicam em uma nostalgia e composição popular, das formas musicais antigas da Bahia e região do recôcavo. Em “meu mundo” é abandonado a musicalidade do rio vermelho, com seu batuque e chocalho para uma sonoridade moderna e astral, de ambientação e estereofonia. Esta dimensão de trabalho sonoro em busca de experimentações sempre foi uma marca especial de Otto e de seu trabalho.
Umas das grandes canções do disco é “6 minutos”; um blues com uma guitarra eletrostática delirante, abrindo a melodia que clama “não precisa falar / nem saber de mim / se até para morrer / você tem que existir”. A quantidade de referências de veia existencialista / humanista detalha o tipo de analogia literária aparente, principalmente à Albert Camus e Franz Kafka. “6 minutos” é um manancial de belos detalhes, como a imagem pós-moderna / natureza morta, lúgubre e intensa “Nasceram flores num canto de um quarto escuro /
Mas eu te juro, são flores de um longo inverno”. E por fim a imagem mais bela do disco, “bem junto, na cama de um quarto de hotel / que você me falou / de uma casa pequena / com uma varanda / chamando as crianças para jantar”. Em seu epíteto “isto é pra viver / isto é pra morrer”.
Alguns podem falar que a chama apaga e finda; para a poesia e a grande arte, o estremecer da chama e seu desfacelamento é apenas o vazio que será preenchido pela criatividade contaminada do grande artista. Otto consegue brilhar a partir da dor, construindo não um disco de lamentações, mas uma obra reflexiva sobre o êxtase do perder. A parceria com a cantora argentina Julieta Venegas em “lágrimas negras” é um belo momento acústico e sonoro do disco, com uma variação sofisticada do refrão construindo uma melodia inusitada.
Otto reconstrói o fazer poético original perdido na veia nordestina. Ele recoloca a música nordestina nos trilhos novamente, construindo um disco conceitual sem ser clássico, amarrado em potências enunciativas de literariedade, sem exageros, sem clichês e com muita originalidade e inspiração.

Comentários

Fabrício Andrade disse…
Rômulo, acabei de ler o texto. Cara, confesso que, em matéria de música, me sinto um desinformado ao perceber a riqueza do texto. Eu preciso conhecer o disco, os cantores, para eu poder comentar com mais propriedade. Sei alguma coisa do Zé Ramalho, Zeca Balero e outros mais conhecidos. Não sei nada do Otto. Desculpe-me pela ignorância. Prometo procurar saber mais. Agora vou ler o outro. Um abraço.
O Fabrício ilustrou mto bem o que se sente quando se lê o que você comenta quando de suas resenhas musicais.
Ler as tuas resenhas, sempre escritas de forma tão vibrante, faz querer conhecer a obra em questão.
Confesso que conheço muito pouco da obra do Otto, sempre tendo-o visto com um ogro cujo o maior mérito foi a Alessandra Negrini.
Agora, lendo as tuas considerações pela obra, elevando-o ao patamar dos grandes pensadores da música nordestina, já me sinto admirando-o e com vontade de conhcer tua obra...
Eu insisto que a Rolling Stone está perdendo um excelente crítico de música...

Parabéns, Rômulo
Joice Stêfani disse…
Olá Professor,
Tem certeza de que você não é um "marketeiro" fazendo propaganda do Otto? Depois de sua aula com as músicas dele e de ler sua resenha fiquei com vontade de ouvir e estudar o disco completo,gostei das letras apresentadas, gostei das melodias e principalmente da interpretação dele, a gente consegue SENTIR o que ele quiz dizer e não somente entender.
E concordo com o William quando ele diz que a Rolling Stone está perdendo um excelente crítico de música.
Aguardando sua postagem sobre a nova turma de letras :)
Thonny Hawany disse…
Caro Rômulo, você está se tornando um especialista em crítica musical. Depois de ler o seu comentário sobre a obra em questão, senti vontade de ouvi-la. Além da crítica em especial, você ainda trouxe comentários sobre alguns figurões como Zé Ramalho e Zeca Baleiro. Essa tem sido sua grande especialidade aqui no seu espaço Blog. É sempre muito bom ler críticas de quem sabe criticar com fundamento. Siga nos trazendo outras informações da arte e de seu teor mágico.
Anônimo disse…
Melhor que tudo isto, é vê-lo ao vivo, encarnando todos os sentimentos frenéticamente no palco! Simplesmente um dos melhores discos/show que já ouvi na vida!
Carlos Kahë disse…
É perfeito, quando alguém de sensibilidade extrema traz à luz o conteúdo que importa do compositor, porque só ouvimos, em relação a esse artista, comentários sobre a sua voz parca. Numa época de tão poucos bons compositores (eu que o diga, pois aguardo na fila o reconhecimento das minhas canções)incursionar pelo universo de um homeem (Otto) que ainda busca solidificar o seu trabalho, dá-nos uma felicidade imensurável. Parabéns, Otto. Obrigado, grande Giácomo.
Carlos Kahê
Carlos Kahë disse…
É perfeito, quando alguém de sensibilidade extrema traz à luz o conteúdo que importa do compositor, porque só ouvimos, em relação a esse artista, comentários sobre a sua voz parca. Numa época de tão poucos bons compositores (eu que o diga, pois aguardo na fila o reconhecimento das minhas canções)incursionar pelo universo de um homeem (Otto) que ainda busca solidificar o seu trabalho, dá-nos uma felicidade imensurável. Parabéns, Otto. Obrigado, grande Giácomo.
Carlos Kahê
Eduardo disse…
É possível que a letra da música "Crua" seja sobre um homem que está a pensar sobre os prós e contras de tirar a virgindade de uma mulher, pois sente desejo(e ela por ele), mas sem intenção de assumir um relacionamento sério? O que você acha, prof. Giácomo? Adorei os seus textos, por isso resolvi perguntar!
Teoliterias disse…
Olá Eduardo; prazer em tê-lo por aqui; acredito que a análise extrínseca responda melhor sua pergunta. então vamos ao contexto: na relação de poder estabelecida pela música, existe um dominante e um dominado. Creio que pela literalidade do texto, poderíamos imaginar que o desvirginado seja o próprio homem (ou Otto). Esta categoria psicanalítica que vc elencou é muito interessante. Parabéns pelo interesse. Cordialmente.
Teoliterias disse…
Prezado Carlos Kahê. Fico muitíssimo feliz de você ter gostado do texto. Muitas vezes me pergunto: para que(m) escrever? você responde esta pergunta com seu comentário. Cordialmente, volte sempre.
Anônimo disse…
Particularmente, fui mais pelo lado da traição, não necessrariamente por um término qualquer de relacionamento. Parabéns por sua análise.
Gustavo pinheiro disse…
É óbvio que a letra crua tem haver com o final da relação com Alessandra Negrini, que cá pra nós que mulher!!!.Só resta lamentar em forma de poesia, como diria o genial Cazuza "Me trair me dá inspiração pra eu ganhar dinheiro...".