Documentário: LIXO EXTRAORDINÁRIO - João Jardim / Vik Muniz / Jardim Gramacho

LIXO EXTRAORDINÁRIO: COMO UMA COISA SE TRANSFORMA EM OUTRA E COMO UMA PESSOA PASSA A SER ELA MESMA.




By Rômulo Giacome

Co-Produzido por João Jardim e com a trilha sonora do Moby, este documentário traz planos e reflexões que se intercomunicam e se congregam em dois grandes vetores: uma discussão sobre arte, principalmente moderna; e a relação arte / função social, desde a acepção da art manager, categoria ritualizada pela pós-modernidade. (atuação do artista e uma forma de arte processo, desencadeando perspectivas sobre materiais, técnicas e formas de interação do ente estético).
Tudo começa quando o artista Vik Muniz, já conceituado e imbricado no sofisticado mundo da arte debut decó, uma vertente da arte para ricos, com intuito decorativo, passa a planejar uma atuação mais viva no campo social, buscando fazer uso da sua plataforma e produção artística em uma comunidade de catadores de Lixo do Rio de Janeiro. Premeditadamente, o artista busca oferecer a uma comunidade carente algo com sua arte e popularidade, o que realmente aconteceu.

Antes é importante que tracemos uma mínima contextualização de Vik Muniz. Vik é um artista moderno, brasileiro, morador dos EUA, que produz painéis e obras que possuem ampla comercialização e iconicidade relativamente forte. Ou seja, sua comunicação iconoclasta trafega entre ritos artísticos da pop art, com desenvolturas decó, passando por ousadias contemporâneas, chegando na propositura de construir um questionamento sobre o próprio material da produção, inferindo e majorando esteticamente na relação material x ideia. Este último estigma é o mais forte, pois já re-produziu layouts de Wandy Warol de café e achocolatado, como crianças pobres sob base de açúcar.
Assim, desta haste de questionamento do artista sobre os materiais que trabalha, agregando um forte desejo social, fez com que Vik e seu produtor caíssem de paraquedas em Gramacho, palco central deste documentário. O nó nevrálgico é: produzir arte do lixo e reverter em capital social, retirando aqueles integrantes do lixão da sua situação social, nem que seja em intelecto, espírito ou consciência.
O documentário começa a tomar volume à medida que Vik entra em contato com os personagens centrais, com marcas pessoais fortes, histórias de vida interessantes e marcadas por dramas e tragédias. Este ritual de progressiva tensão de merecimento x miséria, equaciona a necessidade de sublimação e evolução que cada personagem irá percorrer.
O primeiro personagem é Tião, líder da comunidade e coordenador da cooperativa, que recicla o lixo e transforma o esforço comum em salário. A trama propõem que Tião é o maior leitor do grupo, demonstrando seu caráter idealista e liderança natural, assim como sua cultura maior que os demais. Nessa esteira, o documentário também trafega em personagens femininas fortes, como a cozinheira “Irmã”, figura célebre e orgulhosa, que ostenta vinte anos no meio do lixão, cozinhando em condições precárias para todos os catadores. Esta cena merece recorte: desabada sobre pilhas e pilhas de lixo, em uma lareira nesta floresta degradante, Irmã mantém sua cozinha mambembe, com um fogareiro, panelas grandes e água em um pequeno balde. Nele é lavado desde os produtos até os talheres e pratos. Vik também se corresponde com a bela Suelem, menina / mulher, com seus dois filhos e gestante do terceiro, que prefere reciclar o lixo do que cair na prostituição. Emblemática, Suelem sintetiza as réstias de valores e dignidade que movem uma menina, a empunhar moralidade em meio a nenhum resquício de elemento sadio.
Estas personagens remontam a face individual / coletiva, como produto da representação humana e social de Gramacho. Na busca de maior forma simbólica, Vik procura ressaltar um layout que vislumbre todo o contingente iconoclasta de cada um destes personagens ativos, colocando-os em situações representativas. Tião lembra Marat na famosa cena de sua morte; a menina Suelem está santificada com seus dois filhos, re-lembrando e recolocando a presença de Nossa Senhora Aparecida; Irmã, com um balde na cabeça, demarca o trabalho feminino, a labuta de uma espécime rara de pessoa, aquela que só pode nascer da adversidade, moldada o caráter por meio de duros golpes da própria vida. Mas a melhor de todas, pessoalmente, é Magna; sua feição destaca um processo de revitalização da consciência, de encontrar uma vitória e liberdade perdida, uma atitude escondida a muito tempo, fato que irá ser comprovado no decorrer do documentário.
Poderíamos resumir a metodologia de Vik em duas fases: a primeira é a busca de personagens que possam ser matéria prima de layouts ou ícones de qualidade expressiva, conteúdos fóricos interessantes. A segunda fase é a materizalização desta ícone por meio da produção com o lixo, fato que levou os próprios coletadores a botar a mão no “material reciclável”, como afirmava Zumbi, outro personagem emblemático. Sob a batuta de Vik, os coletadores iam moldando os traços e expressões das personagens. Talhadas e erigidas no próprio lixo, as formas iam se transformando em alguma coisa que não era gente, lixo ou painel fotográfico. A coisa ia tomando uma consistência e por mais que pensássemos: é forma feita do lixo, não era assim que parecia mais. Era agora algo que tinha um efeito estético impressionante, como se atingisse uma cópia ou receptáculo de igual proporção no fruidor deste tipo de arte.
Bem, mas encaminhados os trabalhos e apresentado um mundo diferente daquele tangenciado pelos catadores, Vik deparou-se com um problema de ordem ética: ninguém queria voltar ao lixo. Todos queriam outras formas de trabalho e de vida. A viagem para Londres, onde Tião teve a oportunidade de presenciar um leilão de sua própria representação, tocou os protagonistas desta trama de modo agudo. Não tinha como voltar. Já não era mais provável e nem possível voltar a forma de vida anterior. Deste pequeno e aparente dilema, outro surgiu maior: os projetos sociais tem a pretensão de mudar os “menos favorecidos”. Mas até que ponto os menos favorecidos são realmente “menos”? Em que sentido? O documentário trafega por meio desta possibilidade de ajuda mútua, análoga, entre agente e paciente. Mas quem é paciente ali? Quem é fraco ali? Não é nada fácil trabalhar a noite catando lixo, em situações insalubres, comer o que encontra, morar em locais improváveis e ainda sorrir.
O vácuo existencial entre o sonho e o ter demarca que o próprio agente, Vik no caso, não detém o “mais” para determinar o que pode ou não ajudar os outros. Como ele mesmo diz: “Quando eu não tinha nada, queria tudo; agora que tenho tudo, não quero mais nada”. E a vida torna-se a fatídica e enfadonha, e correta e rica forma de se entediar com a existência. Muito se pode depreender deste documentário.
Pode ser uma forma da elite se mostrar não tão fugaz e fútil, ao oferecer oportunidade a um grupo social, levá-los à arte, ao pico do mezzon decó, e depois deixá-los livre para sonhar.
Mas creio que o ponto mais forte da trama, que discute algo sobre a arte contemporânea, compartilhada em seu escaninho, é a transformação de vidas a partir de perspectivas diferentes. Ser olhado e se olhar por outro viés é condição de mudança efetiva. Talvez a própria trama me tenha feito olhar por outro viés. Indico a todos este documentário, muito bem produzido e bem arquitetado. Que mudemos também.

Comentários

Resenha sensacional!
Muito inovador,
Parabéns Professor Rômulo!
The Sims 3 disse…
Este comentário foi removido pelo autor.