REFLEXÕES ESTILÍSTICAS A PARTIR DO TEXTO “POESIA, PENSAMENTO ABSTRATO” (PAUL VALERY)

por Rômulo Giacome

O presente texto analisa algumas afirmações de Paul Valery, em seu ensaio "Poesia, Pensamento Abstrato" sob o enfoque da teoria literária e da estilística, ensejando entendimento sobre o fazer poesia e suas considerações estilísticas. 

            Neste texto serão tecidas algumas observações de ordem estilística a partir de algumas ideias de Valery em seu clássico ensaio “Poesia, Pensamento Abstrato”.

Cada palavra é uma montagem instantânea de um som e de um sentido, sem qualquer relação entre eles. Cada frase é um ato tão complexo que ninguém, creio eu, pôde até agora dar uma definição sustentável. Pode-se analisar um texto de muitas formas diferentes, pois ele é altamente julgável pela fonética, pela semântica, pela sintaxe, pela lógica, pela retórica, pela filologia, sem omitir a métrica, a prosódia, a etimologia. Vejam que esforço exigiria a empreitada do poeta, se fosse preciso resolver conscientemente todos esses problemas!

A premissa de Vallery é a de que o criador não consegue prever todos os recursos e seus efeitos de sentido, pois seria uma tarefa hercúlea.
Para a Estilística, tal premissa soa como uma mudança de lado na produção e leitura do produto poético da Língua. As divisões técnicas descritas pelo autor, só tem sentido do lado do analista e crítico, não sendo factível no lado criador, uma vez ser de impossível execução. Assim, a formação do pensamento na mente do poeta não se encontra com a constituição fonética ou morfológica desejada ou desejável, mas sim como uma criação expressiva que acaba por determinar uma observação fonética e morfológica. Em outras palavras, o poeta não pensa estilisticamente, no recurso e no sentido previsto de modo regular e matemático.
Mas cabe ao analista estilístico identificar o fenômeno que o criador propiciou dentro de sua teia de possibilidades com a palavra.

O poema, ao contrário, não morre por ter vivido: ele é feito expressamente para renascer de suas cinzas e vir a ser indefinidamente o que acabou de ser. A poesia reconhece-se por esta propriedade: ela tende a se fazer reproduzir em sua forma, ela nos excita a reconstituí-la identicamente. Assim, entre a forma e o conteúdo, entre o som e o sentido, entre o poema e o estado de poesia manifesta-se uma simetria, uma igualdade de importância, de valor e de poder que não existe na prosa, que se opõe à lei da prosa – que decreta a desigualdade dos dois constituintes da linguagem.

A linguagem poética descrita acima encontra seu ponto de explicação no contraste com a linguagem usual e, inclusive, a prosa. No utilitarismo da linguagem, o ato de utilizá-la para uma finalidade a torna extinta após o uso.  Acontece exatamente a mesma coisa com a linguagem útil: a linguagem que acabou de servir-me para exprimir meu propósito, meu desejo, meu comando, minha opinião, e essa linguagem que preencheu sua função desvanece-se assim que chega.
Por outro lado, a linguagem da poesia tem uma existência condicionada à sua forma; uma forma especial de uso, modularmente superior, que a partir de regras intrínsecas, ou da ordem autoral, ou de leis de produção, mantém viva a chama do texto, que em seu estilo, pode ser replicado. Não poderíamos falar que o elemento estruturador da poesia, enquanto forma, não é seu estilo? Aqui entendido enquanto uso especial da língua, das palavras, naquilo que Valery chama de máquina de sentimentos. Tal porque existe uma circularidade no exercício de certas leis e regras de uso que chegam mais potencialmente ao pleito poético. Recursos como a Metáfora e a Metonímia são recorrentes porque constituem-se de normas perenes à poesia.

Pois bem, observei com a mesma frequência com que trabalhei como poeta que meu trabalho exigia de mim não apenas aquela presença do universo poético do qual falei, mas também uma quantidade de reflexões, de decisões, de escolhas e de combinações sem as quais todos os dons possíveis da Musa ou do Acaso continuariam sendo materiais preciosos em um canteiro de obras sem arquiteto. Na verdade, um poema é uma espécie de máquina de produzir o estado poético através das palavras. O efeito dessa máquina é incerto, pois nada é garantido em matéria de ação sobre nossos espíritos. Mas qualquer que seja o resultado e sua incerteza, a construção da máquina exige a solução de muitos problemas.

Chamo a atenção para um rol de ações inteiramente focadas nos ajustes, regulagens e invenções da Língua para atingir um uso poético. Principalmente ações como “escolhas” e “combinações”, o que é exatamente o que estudamos em matéria de seleção e combinação, e a projeção deste equilíbrio entre as escolhas, as relações e a forma como isto tudo se equilibra na linha do poema. Mas o que é realmente contundente é a afirmação da máquina de produzir estado poético através de palavras. Esta frase é bem representativa de várias formas de pensamento e foco em relação à língua e linguagem. Primeiro que desromantiza a prática poética enquanto inspiradora e inspirada por fatores externos senão aos da própria língua e seus recursos. Ora, aqui temos um ponto nevrálgico: o reconhecimento dos recursos da língua nos possibilita encará-la como ferramenta, como instrumento para atingir certos estados de espírito que a poesia consegue chegar. Assim como a metonímia tem a capacidade de associação pelo eixo da contiguidade, ela também é uma figura importante de inclusão dentro deste mesmo eixo.
Aindo no fragmento, podemos inferir que os efeitos dos usos dos recursos expressivos não podem ser previstos em sua totalidade; na verdade, talvez nem em sua parcialidade, sendo extremamente incerto os caminhos do sentido, principalmente seu sucesso frente aos propósitos e energia depreendida pelo criador. Também é intrigante a base de pensamento que coloca o poema como uma máquina, mas também que indica a possibilidade de criar uma máquina que dela se desenvolva versos e sentidos, que se desenvolva estados de espírito poético e sentimentos no homem / leitor, como se essa máquina tivesse início, meio e fim, e a partir dela fosse sendo possível produzir mais versos e mais sentidos. Ora, esta máquina teria dinâmica processual? Se esta máquina pode ser construída, ela não seria uma matriz? Um modelo? Um estilo? O estilo enquanto uma máquina, um molde, uma forma e forma de conduzir palavras a resultados não objetivos, mas desejados.

O poeta desperta no homem, através de um acontecimento inesperado, um incidente externo ou interno. Observem bem esta dualidade possível: às vezes, alguma coisa quer se exprimir, às vezes, algum meio de expressão quer alguma coisa para servir. Considerem também que, entre todas as artes, a nossa é talvez a que coordena o máximo de partes ou de fatores independentes: o som, o sentido, o real, o imaginário, a lógica, a sintaxe e a dupla invenção do conteúdo e da forma... e tudo isso por intermédio desse meio essencialmente prático, perpetuamente alterado, profanado, responsável por desempenhar todos os ofícios: a linguagem comum, da qual devemos tirar uma Voz pura, ideal, capaz de comunicar sem fraquezas, sem aparente esforço, sem atentado ao ouvido e sem romper a esfera instantânea do universo poético, uma ideia de algum Eu maravilhosamente superior a Mim.

O Fragmento acima propõe um embate entre duas situações dialógicas: existe um momento de pressão de algo que quer se exprimir, mas também existe uma expressão que procura algo para se justificar e legitimar. Esta busca de aderência entre uma figura ou expressão a um possível conteúdo, muitas vezes é elemento da práxis poética, ou de realização de sua fórmula mágica. Pois bem, teríamos uma metáfora pronta, estruturada, em busca de um poema inteiro, ou de um sentido.
É muito caro às nossas inferências estilísticas o momento que Valery aborda a dificuldade de lidar com tantos elementos formais, técnicos e materiais que temos: ele volta a falar em som e sentido, sintaxe e, principalmente, a relação mais que técnica entre forma e conteúdo; e dinamicamente, isso tudo não pode passar ao largo, nem em mágica ou sonho, da nossa língua útil, aquela mesma que se exaure quando utilizada em modo comum.

       A máquina de produzir estados poéticos por meio de palavras, nada mais é do que feita do mesmo material, estrutura e dinâmica da Língua Comum, esta que nascemos e morremos, em sua base materna. Mas ao aplicarmos uma espécie de tecnologia poética, pensando novas funções das palavras, realizando novas conexões e relações inovadores, explorando o poder de certas estruturas macro e micro poéticas já construídas, a língua torna-se potencialmente ampla e passível de realizar todos os efeitos de sentido e espírito almejados.  

Comentários

Janaína Carvalho disse…
"Cada frase é um ato tão complexo que ninguém, creio eu, pôde até agora dar uma definição sustentável. Pode-se analisar um texto de muitas formas diferentes, pois ele é altamente julgável pela fonética, pela semântica, pela sintaxe, pela lógica, pela retórica, pela filologia, sem omitir a métrica, a prosódia, a etimologia."
Perfeito!
A Língua é viva e cheia de ferramentas.
Obrigada por compartilhar professor!