PRINCÍPIO(S) DA ANÁLISE LITERÁRIA (Artigo)


Por Rômulo Giacome de Oliveira Fernandes


RESUMO:
O presente trabalho surgiu da inquietação entre o ato de ensinar a análise literária em seus princípios básicos e a necessidade da teoria da literatura em sustentar-se por sobre fortes postulados técnicos e teóricos. Deste hiato metodológico, irrompem quebras de ambos os lados, onde o que hermeticamente se consolida na forte teoria, por outro lado deve estar claro na composição do percurso de análise ao iniciante. Os objetivos primordiais convergem na possibilidade de apresentar um painel de conceitos amplamente difundidos e aplicados na análise literária, tomando como espaço de discussão a semiótica poética e a estética. Ler este artigo é procurar substâncias de discussão sobre a estética, recepção, criação e processos de significação que engendram a estrutura do texto literário, bem como mostrar  caminhos e posturas para o analista da arte verbal.

PALAVRAS-CHAVE: ANÁLISE LITERÁRIA; SIGNIFICAÇÃO; LEITURA; METODOLOGIA


1. Introdução


            O presente artigo tem uma proposta um tanto quanto didática: tentar nortear a ação de analisar obras literárias, sem parecer um “manual” de regras, o que a literatura abomina, nem tampouco complicar a leitura para acadêmicos iniciantes nesta prática maravilhosa de leitura e resgate do valor artístico de um poema. Logo de início dois problemas conceituais e epistemológicos surgem: como selecionar idéias de literatura lírica e metodologias de análise dentro de um infinito rol de teorias e correntes, muitas vezes tendenciosas e parciais? E como torná-las práticas e efetivas no campo de atuação do objeto literário?
            O leitor assíduo de literatura e o prático analista sabem o quanto “método” e “definição de literatura” andam juntos. Quase que indissociáveis, pode-se afirmar. Podemos pressupor que analisar é antes de tudo “comprovar” o valor e o sentido do discurso original da arte literária. Atesta-se o valor em cada análise; contribui para sua perpetuação semântica em cada nova leitura. Em suma, analisar é a prática mais relevante de toda a atividade literária, depois da autoria, pois o poema só pode ser considerado acabado depois de lido. Nas próximas páginas, dialogaremos com os dois filões primordiais da estética artística literária, trançando os fios que armam uma concepção legítima sobre arte verbal, bem como elucidando alguns pontos que podem ser de grande valia aos iniciantes.


2. Desmistificando a Análise para Mistificar a Poesia;


            Mais do que o afã da leitura e das “pseudo viagens” existentes dentro das análises literárias, existem elementos que transmigram as potencialidades de um texto, no ato de seu processo de desmaterialização e re-alocação em novos suportes.
            Uma boa análise, então, não está ligada tão somente a metadiscursos provenientes de uma bela dose de imaginação e ousadia, embora esta esteja análoga ao aprofundamento do texto. É o que ocorre quando o iniciante parafraseia o texto, decodificando um código implícito e codificando em um código explícito. 
            Toda linguagem artística ou todo discurso confeccionado a partir da re-elaboração do real, estão ligados ao metadiscurso, que não é senão oriundo das intertextualidades provocadas pela sistemática explicação do fato, seja teórico ou seja real. São discursos por sobre discursos, cascatas de textos sobre outros textos, que vão criando referências e criando análises. Escrever sobre algum ente artístico é fazê-lo pulsar por sobre sua égide ente significativo e representativo. O metadiscurso entendido aqui pela ótica de Barthes (1974), não é somente aquele que re-explica semioticamente o código fonte, mas que explica a si próprio, como é de princípio da função poética[1]. Em outras palavras, no ato da criação de um metadiscurso sobre o objeto literário, a função poética, voltar sobre sua mensagem, também é o ato próprio de voltar por sobre sua própria configuração, surgindo a possibilidade, sempre, da função metalinguística, o que já era previsto por Jakobson em seu ensaio A Dominante de (1954). Não só se evidencia os possíveis conteúdos do poema, como também os possíveis recursos que foram utilizados para se obter tais conteúdos. Além de ter a obrigatoriedade de falar sobre si próprio, o bom poema emite ao interpretante um código anexo, uma faixa de discurso implícito que dialoga com a concepção de arte. O processo ocorre como se o poema, além de significar variadas porções de leituras, (polissemia devido à função poética), toma partido da necessidade de se situar como arte, emanando implicitamente códigos que possibilitam sua leitura como tal: em outras palavras é como se o poema falasse, “olhe, perceba que antes de tudo, eu sou um objeto de arte, e para tal, tenho uma configuração predestinada”. É o caso, muitas vezes, de discutir se João Gostoso (Manuel Bandeira) é arte verbal ou não. Intrinsecamente, seus recursos são construídos para que fujam à concepção de lirismo maculada pelos manuais de retórica; mas o que acontece é uma inversão dos papéis, onde o eu lírico surge narrado, como uma personagem de tiras jornalísticas, que poderia deflagrar uma obra de pouco valor literário. Neste caso, os pesos da metalinguagem e dos já referidos códigos anexos de artisticidade, são valiosos, visto que pela ótica interior, o poema é individual e referencial, não podendo estar alocado no seleto rol de obras artísticas. Estas exigem uma determinação essencial de arte na atemporalidade e universalidade.
Mas a atuação dos códigos anexos, indica que a leitura é metafórica, justificando: João Gostoso é uma obra de arte; portanto é universal; se for universal, João “representa” a todos que convivem com os mesmos valores que ele. Veja a importância do contexto no texto. Esta supremacia do fator contextual sobre o textual, deu vazão às possibilidades de leitura que a obra tem em não ser mais uma notícia de jornal, pelo simples fato de que o autor não queria que ela fosse notícia e sim arte. Sendo arte, o comportamento analítico é diferente.
Em linhas gerais, para o analista de qualquer obra de arte, seja clássica (o que garante em termos sua classificação artística, forjada pela história cultural) ou arte experimental (tem como princípio estimular a desautomatização) é de suma importância reportar a leitura aos códigos artísticos primários, que sempre estão amarrados ao princípio da criação e serão deduzidos extrinsecamente. Todo poema é arte verbal, portanto compartilha valores semióticos gerais com todo o mural de criação artística da humanidade.
            Este dado torna-se salutar para procurar na arte sua porção vital, seja na pintura, escultura ou qualquer linguagem artística. Uma decodificação fluente dos sistemas simbólicos artísticos, que muitas vezes estão escondidos dentro do discurso, é essencial para construir análises que valorizem a linguagem em todos os seus âmbitos. Digamos que todo analista de literatura é sobretudo um analista da arte, o que exige dele o conhecimento dos valores primordiais para a compreensão da mesma. Os dados semióticos sobre um referido objeto artístico são captados dos princípios imutáveis, que agindo como categorias, não se dissolvem no espaço/tempo. Como categorias, acho por bem a exemplificação de algumas:
A arte é sempre universal. A projeção de um sistema simbólico pessoal e particular distorce as possibilidades de análise, pois só poderão dar vazão quando o analista está munido de correspondências contextuais fortes de pessoalidade autoral e subjetividades que necessitam de descortinamento.
 A arte é sempre atemporal. Um outro código anexo da arte é a perspectiva de que a mesma tem de encontrar ambiente favorável de significação em qualquer relação temporal. Isto porque sua estrutura primária, ou a mais profunda como desejam, está alocada em relações e não em formas. Uma relação é sempre possível de acontecer, não morre e não se dissolve no tempo. Esta relação será ainda maior quando estiver possuída de conflito. Mudando-se os termos, a estrutura relacional e conflituosa permanece sempre a mesma. A arte verbal é uma miscelânea de conflitos, oriundos de vazões do subconsciente artístico para um consciente coletivo, que é a linguagem. Greimas (1994) tem estudado profundamente o peso das relações conflituosas determinando algumas naturezas passionais, o que tem possibilitado estudos pertinentes sobre a estrutura poética e nas relações universais de um proto-sujeito para sujeito-signo e assim, para um sujeito-interpretante.  
A arte é sempre original e inovadora. A literatura rompe o discurso rotineiro e cotidiano, recriando formas originais, que analogicamente propiciam romper o tempo e o espaço que usamos como referência. Esta inovação constitui um estranhamento, conceito caro ao formalismo e ainda atual para o estudo da literariedade. (EAGLETON, 1983)

3. Iniciando a Análise

            O início da análise tende a ser o momento mais complexo, pois permite variáveis ainda não reconhecidas e caminhos textuais brevemente assistidos por uma parca leitura primária ou secundária. Podemos afirmar que Interpretar é escolher, ou seja, trilhar um caminho de textualidades que estarão unidas ao discurso projetado em nossos pressupostos técnicos, subjetivos e conceituais. Iniciamos a análise tendo que saber qual sistema interpretativo começar a trilhar.
            Um discurso sempre está disposto a significar algo. Ele pode ser encarado como um texto- signo em sua unidade; e em sua estrutura inerente, formal e conceitual, um sistema- signo. Isto quer dizer que como elemento global, ele representa algo a alguém, possibilitando que neste afã de ser reconhecido, decodificado e utilizado, produz no interpretante um novo signo, que deve ser construído em modo inicial, pois a literatura não converge uma opinião uníssona, ela apenas sugere, tal como em uma semiose ad infinutum. As teorias semióticas, embasadas na escola de Peirce (1983), comprovam estas visões, onde a validade do signo está gerida por sua possibilidade de interpretação e representação.
            Se considerarmos o texto literário um texto signo, este objeto discursivo possui um interlocutor natural a quem se refere, e não obstante a teoria da comunicação, o que veicula e como veicula. Estamos entrando no caráter da intencionalidade textual, o primeiro momento importante da análise, onde poderemos diagnosticar os motivos do texto. Um texto sempre fala algo a alguém. Um texto literário possui uma intencionalidade temática: eixos de conteúdos que veicula e que podem ser trilhados pela análise. Separar estas intencionalidades narrativas é o primeiro passo.
            Até o presente momento é possível perceber que antes de iniciar camadas de análise, é preciso diagnosticar os interesses do texto como ícone representativo de uma dada realidade assistida e subjetivada pelo intelecto criador do eu-autoral.  Em outras palavras, perceber na intencionalidade do texto, o que ele quer veicular, discutir, sugerir ao interpretante. Podemos afunilar a questão criando grandes áreas de interesse, que serão desdobradas em novas áreas e assim em um processo contínuo.
            Um poema ou texto narrativo poderá estar situado em campos temáticos, que darão origem às análises. Podemos compreender um texto, como modo exemplificativo, tentando enviar mensagens a uma área definida e a um público definido. Assinalamos nossa decifração destes campos através da reflexão que o texto promove. Ele pode estar voltado a algum tema específico. A natureza do texto literário está ligada à forma, em como ele se predispõem a ser condutor de mensagens, e de como ele pode possibilita escolhas a quem o ler. Exemplos de grandes campos temáticos:

            Amor – Amizade – Existência – Ontologias – Histórias – estórias –

            Exemplos de instrumentos de reflexão sobre outras plataformas:

            A condição estética – a linguagem literária – o fazer literário – a condição do eu

            Este breve resumo de campos interpretativos ajudam a tornar a análise mais sólida, pois abre exatamente o campo que deve ser galgado passo a passo. Nunca se inicia uma análise sem antes estipular o caminho interpretativo que irá se seguir, pois seria andar em círculos, parafrasear a obra, simplesmente descrevê-la.

            4. Os princípios da Análise

            A análise tem cunho metodológico e sistemático. Ela descreve os processos e engendra sentidos a esses processos. É o estudo de como aquele código consegue veicular aquela mensagem. Ela parte dos componentes intrínsecos e extrínsecos da obra. Não é o estudo do que se fala, mas do como se fala. (POUND, 2003)
            Tendo em mente um caminho frente ao sistema interpretativo, procura-se destacar os componentes textuais, provocando-os a dar vazão à tese inicial reivindicada. Estes componentes são as comprovações devidas para sustentar uma interpretação no ar científico. O início de uma análise literária é o mesmo que iniciar uma expedição rumo ao desconhecido, tendo como plano de percurso sua única instrução. Por mais que seja inóspito o caminho e desconhecido o fato, sempre devemos saber para onde ir.
            Podemos dividir a análise em camadas textuais, abarcando toda a porção semiótica do objeto analisado. Como propomos no início deste trabalho, o princípio do sistema comunicativo é a primeira etapa. Para esta empreitada devemos engendrar uma atitude de analista por sobre um dado objeto literário. Essa atitude de analista pressupõem, baseando-se na ideia de escolha do caminho de análise, sempre em uma tese; como se diz na semântica estrutural (GREIMAS, 1973), um sistema interpretativo que apraz todos os desejos do leitor. Isto porque um texto é aquilo que se escreve dele, visto que o sentido do código artístico está no leitor e sua estrutura está no estudo que fazemos dela.
A análise possibilita a obra estar viva perante o imaginário do leitor e desta forma, enriquecida pelas interpelações provocadas. Provocar é uma reação natural de uma linguagem que não tem um fim pragmático, efetivo, e sim que busca atrás de seu código um regime de significado concreto e limitado. Assim, é possível afirmar que a linguagem literária assume, na análise, tanto uma porção técnica, quando reconhecemos em seu bojo os elementos linguísticos que dão o status de obra, como um comportamento intuitivo, onde o campo sêmico revela possibilidades de ir além, provocadas pelo imediato sentido sensorial, imagético e pré-simbólico.
A análise é um discurso efetuado por sobre outro discurso: não que o primeiro tenha a intenção de parafrasear o código fonte, mas ao contrário, explicar a linguagem utilizada pela arte, no momento que toda obra realmente artística volta-se por sobre si mesma. Isto é inevitável. Por outro lado, a qualidade da interpretação, permite ir além do significado, procurando mais que novos semas, mas possibilidades de comutação e conjunção, distanciado-se cada vez mais do concreto, em um processo de abstração que toma direção infinita, e cada vez mais, próxima da subjetividade inerente à toda leitura não voltada ao fato e ao referente.

5. O Ritual

Esta modalidade de aproximação subjetiva e latente de uma interpretação a partir de signos que não tem em si a resposta, mas sim a potência de uma resposta, permite aditivar no poema um caráter místico, no momento que a construção de um amplo sentido, de uma convalidação de valor e mérito da obra, advém da impregnação e atribuição de acreditar na linguagem como se ela fosse a construção imaginária do ser; acreditar nela como resposta e como síncrese (TATIT, 1994) das emoções humanas; em outras palavras, acreditar nela como se ela fosse a única maneira de comunicação direta de emoções e aproximação das passionalidades e reflexões deflagradas em seu circuito de atuação. O crítico, em primeiro lugar, mistifica a linguagem literária, já sabendo de seu valor e de sua interação com componentes humanos que não estão literalmente ligados com a efetividade: como amor, ódio, sentimentos, fé, liberdade e o próprio conceito de arte. Por não estarem ligados empiricamente ao real deflagram-se nas modulares visões dela própria.

6. Modulação

Muitas questões afloram do hiato insurgente entre o signo material, organizadamente e simetricamente disposto na superfície do papel e todo o horizonte da interpretação, aberto como que sangrando dentro da textualidade de “um leitor” decifrador de dores, mágoas, cansaços e tudo que a literatura alimenta como conteúdo dentro do conteúdo. Sim, pois não podemos admitir que sociedade e / ou amor sejam conteúdos por natureza da obra literária; dentro deles existem novos conteúdos, em fragmentos, em pequenas doses deflagradas pelo tecido verbal. Este mistério inquietante do processo de recolhimento desta réstia de sentido, ou aquilo que dá sentido ao texto, fazendo-o soar exemplar, não escapa aos estudos linguísticos. Qual o mecanismo que engendra o processo de desmaterialização da forma para o conteúdo? Possibilita a câmbio do denotativo para o conotativo? Em linhas gerais chamamos de modulação.
Tecnicamente, estudada com muito afinco por Greimas, na obra Ensaios de Semiótica Poética (1973) o sentido despertado na obra, incitado e provocado pela leitura, se dá pelo diálogo entre os semas (mínimas unidades de sentido). Este ato de exalar sentidos que o contexto elocutório admite, está centrado por sobre o eixo das contradições internas e seu despertar.
Já não é mal dito que o sentido surge na diferença (GREIMAS, 1973). Também não é vão descobrir sentidos nas contradições internas do texto. Esta é uma dica semiótico/semântica que deve contribuir a priori como primeira manifestação analítica. A modulação é justamente este processo de evolução de um dado signo natural para o campo do horizonte da interpretação. Linguisticamente, é quando o signo transpassa do sentido denotativo (paradigmático) para o conotativo (relações de sentido contextuais e virtuais).
Em sala de aula utilizei um signo comum “prego” para assinalar o processo de modulação latente na linguagem literária. Em primeira instância teríamos o lexema “prego” em seu sentido natural (denotativo). Um objeto pontiagudo com uma superfície plana para receber o impacto que culminará em sua força de penetração e fixação. É notório que esta visão linguística do signo prego pode emular outras visões pela ótica tricotômica de Peirce (1983). Estas visões são outras maneiras de captar o sentido e o grau de representação do real efetuado pelo signo: 
- uma sensação de rigidez, ou pontiagudo, que emana corte, perfuração; em sentido quali (do campo das percepções primárias) dor; rasgo, ou até mesmo força; (ícone / quali-signo)
- uma compreensão indicial; um componente da construção, da engenharia; uma parte estrutural do alicerce da casa, a fixação das madeiras, do assoalho, do madeiramento do telhado; (índice / sin-signo)
- ou uma compreensão social, por uma formatação grupal de clichê (gíria); o “prego” como aquele “idiota”, o ser a margem; limitações no cenário da juventude; o mal visto conjumina-se no prego; (legi-signo / símbolo)
Note que sem a presença de qualquer contexto elocutório, o prego pode adquirir várias performances semióticas, que darão um amplo leque de convenções semânticas / semióticas para sua compreensão e assim representação do dado real que ele deseja articular.
Quando em contato com outros contextos discursivos, este lexema “prego” passa a dialogar com a carga semântica de outros lexemas, recebendo infiltrações ou novas dimensões de significação. Observe o verso:

“O prego a elidir a dor;
O prego a contornar a fé”

O prego em sentido status quo, ou em sentido de dicionário, contém semas que podem conectar-se com dor. Esta relação é dada através da combinação de semas (pequenas unidades de sentido) que surgem tanto das relações paradigmáticas quanto sintagmáticas, conceitos terminológicos retirados da teoria Greimasiana de sentido, em conjunto com os postulados tricotômicos de Peirce (1983):  
“prego”
“dor”
Sema: //pontiagudo//
Sema: //machucar//
Sema: //perfurar//
Sema: //perfurar//
Classema: //perfurar//
Note que existe uma conjunção no eixo do sintagma //perfurar//
Esta relação chama-se classema (o sema de classe)
Do ponto de vista actancial (a relação de ação preconizada pelo “prego”) analisamos que:
“Prego”  ELIDE    “dor”
Existe uma relação disjuntiva no processo: elidir possui carga semântica de “diminuir”, “cortar”; Como o prego pode “diminuir” a dor? Ele próprio possui semas que “adicionam” dor
Lexema: “prego”
Sema contextual: (constituído através das relações do enunciado)
-
//o prego diminui a dor//
Existe a necessidade de uma coesão semiótica: qual o outro signo que poderia nos dar mais informações sobre esta questão?
“prego”
“Fé”

Semas: “Crença”; “Religião”
Para obtermos um painel completo das intencionalidades discursivas, precisaríamos relacionar as informações do primeiro verso com o segundo; Para isto, nos já abandonamos o plano discursivo a passamos para o campo semiótico, do meta-texto construído pelo texto principal. (uma espécie de segunda camada discursiva construída somente pelos sentidos)
//o prego como agente de minimizar a dor//
//a religião//
//o prego da cruz de Cristo//
//cristianismo//
Vejam que o grau e modulação permitiu que aquele “prego” aparentemente deslocado da coesão concreta, nos fala ao nível dos sentidos; dialoga com a “dor” e a “fé” no campo do meta-texto; a cruz, a imagem de Jesus Cristo crucificado, o legi-signo do Cristianismo (o símbolo legitimado pela cultura) tem o prego como marca “indicial” (uma parte do processo) à Jesus; Cruz; Prego
Prego
Ações: (actanciais)

//diminui a dor com Cristo//

//contorna a fé, como uma espécie de representação máxima da redenção pela dor, pelo sofrimento//

A semiótica não possui apenas a preocupação de descrever a estrutura dos sentidos e explicá-la organizadamente em categorias. Bem, é natural que a presença de categorias de sentido esteja proeminente. Observem no esquema:

Primeiro Nível: a percepção do prego como causador da dor; sua imagem pontiaguda e forte na carne (quali-signo); sua manifestação concreta enquanto objeto e discurso (sentido denotativo);
Segundo Nível: o “estranhamento” causado pela presença do “elidir” como contraste ao “adicionar” dor; o prego diminui a dor: o lexema já não é mais o mesmo; ele já se apresenta de uma forma polissêmica: que prego é este que diminui a dor? Mesmo que a questão esteja ainda simplista, o contexto discursivo provocou um grau de modulação nítido, abrindo mais possibilidades sêmicas ao prego.
Terceiro Nível: O prego necessita de respostas para se sustentar em seu campo de representação; a necessidade de uma coesão semiótica movimenta nossas atenções a procurar mais informações; logo a encontramos no lexema “fé”; que por emulação semiótica acaba linkando a um novo discurso: o discurso cristão. Neste, o prego atua como índice, fazendo parte do processo de crucificação de Cristo, e conseqüentemente redenção. A entrada do discurso cristão como meta-discurso, vem a fortalecer a tese semiótica de que não existe campo de representação isolado. Todo texto literário é senão um grande hiper-texto, que necessita de fazer “links” com novos textos para se estruturar e representar aquilo que foi preconizado pela intencionalidade. Não poderemos deixar de citar que:
A obra literária e seus constituintes fazem parte de um todo muito maior, onde ela é apenas mediadora e incitadora; entendê-la como núcleo de novas interrogações é conseqüentemente motivo para reescrevê-la novamente. Esta é a operação do meta-discurso. Não há signo sem outro signo. Não há texto sem outro texto.
Quarto nível: O prego está para o texto, assim como o está para o meta-texto “crucificação” como elemento norteador do maravilhoso; através do sofrimento do elemento simbólico, a que ele tem embasamento, bem como da representação do crucificar / ressuscitar e de toda a tônica cristã, ele adquire de modo endêmico uma carga semântica tal, que figura como espetáculo da misericórdia (diálogo com a ideologia cristã); um espetáculo do sofrimento e do amor para a salvação de todos; sob a égide da imagem cristã, já consolidada e simbólica (legi-signo), com toda a sua força cultural e moral, toda a amplitude emotiva que a imagem releva, podemos afirmar que o lexema “prego” passou por um processo de modulação tão atroz, que de modo ventríloquo, trouxe a tona uma imensidão de novos discursos e uma força poética extrema.
Estaríamos nos limitando se encerrássemos aqui a explanação sobre o ato “modular” do texto poético. Adicione-se a isto a qualidade da elocução; ora, o fato do lexema “prego” estar condicionado a um contexto poético, exalando sentidos através de seu grau de modulação, tendo como categoria a exploração do maravilho e do sublime, é perceptível o quanto ele adquire de expressão “bela”. Esta condição de aglutinar sobre si informações semióticas de beleza, contribui para a constatação artística do dado texto.

Resumidamente teríamos este pequeno painel: (de baixo para cima)

Grau 5. “prego” conotativo: mudança total de sentido: provocação ao sublime; abertura de hipóteses; polissemia; signo literário; (literariedade). Ele volta o ciclo todo de interpretações e pode soar “novo”, dependendo das novas substituições; 
Grau 4. “prego” conotativo: misericórdia / amor
Grau 3. “prego” conotativo: crucificação / redenção; imagem cristã; (diálogo com o meta-texto Cristianismo)
Grau 2. “prego” conotativo: dor; sofrimento; teste;
Grau 1:  “prego” sentido ambíguo: “crítica social em gíria” (não é literário, pois não permite significação
Grau zero: “prego” (sentido denotativo): aspectos qualitativos (quali-signo)

Acima podemos vislumbrar vários pontos caros à teoria literária e semiótica:
a)      Os graus de escritura em seu processo ascendente;
b)      A literariedade como capacidade discursiva de “esvaziar” o signo e abri-lo a possibilidades;
c)      A modulação como processo de evolução semiótica / sêmica do signo ao seu grau máximo de sentido e valor estético.
d)      A necessidade de encarar o texto literário como um hiper-texto, dotado de ramificações e links.


7. O processo de significação

            Dois conceitos legitimam o valor dado ao processo de significação que cita Barthes em sua obra Crítica e Verdade (1974).  A semiose  é o processo coletivo de criação de um sentido.
            A obra, no ponto de criação, acaba perdendo e distanciando-se do momento da enunciação e passa a ficar ilhada no contexto de recepção, que será senão o próprio momento de enunciação textual. Em outras palavras, após o momento do “parto” do texto, enquanto portador de um sentido, ela passa a viver dependente de um interlocutor e todo um contexto de interpretação, que está dado tanto pela crítica, quanto pelo leitor comum, quanto pelo próprio painel discursivo (a interação dos discursos). Desta distância inicial e final entre o momento da criação e o momento da recepção, percebemos a obra como portadora de sua própria explicação, ela, sozinha no espaço-tempo, tendo que se expressar sobre si mesma, se auto-explicar, efetuando uma auto-reflexão metalingüística de seus conteúdos e matéria estética. Esta solidão discursiva, permite que ela (obra) se espalhe pelos vãos da compreensão, infiltre-se nos entremeios da história a da sociedade, reproduzindo o que ela possui em categorias, ampliando seu sentido através de um interlocutor ausente. Após a criação e em seu momento ontológico, a obra possui oculta um autor e um receptor, estando existindo per si.

8. Organograma de Atividades de Análise

 

1ª Tomada
2ª Tomada
Dicas

ASPECTOS FORMAIS

Disposição gráfica do texto
Por que o autor quis colocar isto aqui?


Ritmo; Sintaxe;

INTERPRETAÇÃO



Melopeia: sonoridades
- O que a forma “projeta” de sentidos;


Versificação (classificação)
- quais os dados que ela me fornece para prosseguir em minha “escolha” de sentido;


Escolhas morfológicas: ações; nominalizações; caracterizações;
- qual a “hipótese” de leitura que irei desenvolver;
O resultado final é um relatório dissertativo:

Identificação do “Eu” poético
RESSALTAR A LITERARIEDADE
Introdução: o que descobri

 


- O que a obra tem de valor literário;
Desenvolvimento: comprovar

ASPECTOS DO CONTEÚDO

Figuras de Sentido
- quais os “códigos” visíveis de Arte, presentes no texto;
Conclusão: fechar as idéias

Perversões Sintáticas

SISTEMAS SEMIÓTICOS



Imagens: logopéia
- posso conduzir a análise a uma leitura de outro sistema semiótico: pintura; sociedade; vida; etc.
Sempre deve existir citações do texto para comprovar minhas idéias;

Signos dominantes;


Isotopias à
Relações sêmicas (semas) e novos sentidos (vertical)
Criação de elementos pré-simbólicos


Isotopias à
Relações sêmicas dentro do sistema; procura de identidades
(classemas) sema contextual


O Estranhamento – Relação Forma E Conteúdo – Dúvida E Ruptura
Captamos o tecido verbal pela apreensão: VISUAL; SONORA E CONCEITUAL;


9. Tipos de Leitura (Análises) do Objeto Literário


Em nada os postulados ajudam se não tivermos uma perspectiva de análise consolidada. Um viés nítido de abordagem, com especificações e objetivações efetivas. Dessa forma, torna-se salutar a presença de algumas diferenças essenciais entre atos de leitura e propósitos de análise. A análise é um procedimento em si, mas que necessita de uma projeção potencial de objetivos, de determinações que a tornem coerente e propositalmente prática. Vejamos três definições de leituras propositais mediante a natureza da análise:

A Leitura Individual Realizável está engendrada nas ações de interpretação (escolha e substituição). Pauta-se na necessidade de decodificação, e portanto desmaterialização do código lingüístico em seus desdobramentos possíveis; ela se identifica com a comprovação e evidência dos resultados através de provas concretas retiradas por meio de citações.
Existe uma manifestação própria da subjetividade, projetando individualidades que cumpriram o papel da semiose, ou seja, complementarão as lacunas do discurso literário, que sempre está comprometido com a sugestão. Logo, uma leitura individual realizável deve subentender um outro discurso sobre um primeiro (literário) que tenha característica originais e contribua na visão de arte verbal como inovação das cosmovisões. Não só propor interpretações (escolha), mas também sobrepor ao resultado uma análise dos processos, em outras palavras, como aquilo disse o que disse. Como a forma projetou o conteúdo resultante da visão particularizada. A análise dos processos prevê métodos que vão desde a porção material até as substancias semânticas mais complexas. A variedade e quantidade de leituras individuais é que promove a continuidade do texto literário através da descontinuidade dos discursos subjetivos, propagando a literatura no vácuo cultural da inovação. Este processo tem relação estreita com a semiose dos signos.
            Por outro lado, a Leitura Instrumentalizada (recursos / relação / sentido) pauta-se no uso de leituras teóricas exteriores ao discurso literário. Pode estar comprometida com o período ou com as relações contextuais da história. Comprova teses e embasa-se em movimentos estéticos relativos aos estudos existentes. Usa a metodologia do intertexto, povoando a análise de dados importantes ao comportamento do discurso. Também procura avaliar e analisar a linguagem utilizada e suas estratégias discursivas necessárias ao provento da literatura. Explicar o código literário, sua formação material e abstrato, são denominadores comuns deste tipo de leitura. A semântica estrutural possui um aporte interessante para o diagnóstico do código literário, bem como noções de estética, filosofia, sociologia entre outros cabedais teóricos.
Chamaremos a terceira de Metadiscursos ou Ícones de Leitura. Isto porque faz uso de outros sistemas simbólicos para efetuar leituras possíveis de uma obra literária. Um ícone de leitura possui relação semiótica com um objeto literário, pois prevê novas situações discursivas e elabora relações textuais a níveis de categorias e não somente de conteúdos. Um discurso literário é sempre fruto de contradições externas e internas. Dentro de um campo aparente (antíteses) que provocam no leitor possibilidades sêmicas plausíveis de análise e leitura. A arte literária é feita de contradições, descontinuidades e fluxos e influxos. O uso de metáforas, símbolos, metonímias povoam este tipo de relação semiótica.            
Povoando a tessitura discursiva, esta exemplarmente designativa ao signo literário, temos as referências. Elas sempre engendram outros discursos já estabelecidos pela cultura / história, adotando-os como suporte de interpretação ou analogia primordial. Referências ideológicas ou simplesmente alegóricas, estão inerentes ao processo de nominação dos objetos que não existem, daquilo que é latente mas não é preciso, ou daquilo que vive na potência do ato, no tecido das possibilidades. De modo didático, teríamos nas referências o papel mais explícito do que a metáfora, mas por outro lado, dependendo da qualidade de nosso leitor, teríamos limitações referenciais, visto que para sua existência é mister o contexto cultural simbólico.

Considerações Finais

A forma aparentemente caótica com que o desenvolvimento deste trabalho está assentado, não necessariamente reflete ausência de propósitos didáticos. A literatura não deve ser entendida como um objeto estanque, pautado em um pragmatismo ideológico social meramente reprodutor de sua sociedade. Existem processos complexos de recepção, significação, leitura, constituição, método e teorização que completam um grande painel dos estudos literários, que a partir de especulações latentes da lingüística contemporânea, semiótica e estética, procuram elevar à poética ao grau máximo de composição artística, visto que a mesma não está restringida ao tempo nem ao espaço. Ela permite-nos interpretar a sim próprios bem como o nosso próprio tempo em categorias universais, tanto de estruturação de um dado código verbal, como uma re-estruturação do próprio pensamento.
Em suma, analisar é sair do grau autômato de parasita dos conceitos segmentados, para a apreciação do novo e inconfundível ato de duvidar da própria interpretação, de duvidar da própria maneira de escrever e ser escrito enquanto crítico.

REFERÊNCIAS 


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[1] JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. Trad. I. Blikstein. São Paulo: Ed. Cultrix,1995.

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