PRINCÍPIO(S) DA ANÁLISE LITERÁRIA (Artigo)
Por Rômulo Giacome de Oliveira Fernandes
RESUMO:
O presente trabalho surgiu da inquietação entre o
ato de ensinar a análise literária em seus princípios básicos e a necessidade
da teoria da literatura em sustentar-se por sobre fortes postulados técnicos e
teóricos. Deste hiato metodológico, irrompem quebras de ambos os lados, onde o
que hermeticamente se consolida na forte teoria, por outro lado deve estar
claro na composição do percurso de análise ao iniciante. Os objetivos primordiais
convergem na possibilidade de apresentar um painel de conceitos amplamente
difundidos e aplicados na análise literária, tomando como espaço de discussão a
semiótica poética e a estética. Ler este artigo é procurar substâncias de
discussão sobre a estética, recepção, criação e processos de significação que
engendram a estrutura do texto literário, bem como mostrar caminhos e posturas para o analista da arte
verbal.
PALAVRAS-CHAVE: ANÁLISE LITERÁRIA; SIGNIFICAÇÃO; LEITURA;
METODOLOGIA
1.
Introdução
O presente artigo tem uma
proposta um tanto quanto didática: tentar nortear a ação de analisar obras
literárias, sem parecer um “manual” de regras, o que a literatura abomina, nem
tampouco complicar a leitura para acadêmicos iniciantes nesta prática maravilhosa
de leitura e resgate do valor artístico de um poema. Logo de início dois
problemas conceituais e epistemológicos surgem: como selecionar idéias de
literatura lírica e metodologias de análise dentro de um infinito rol de
teorias e correntes, muitas vezes tendenciosas e parciais? E como torná-las
práticas e efetivas no campo de atuação do objeto literário?
O leitor assíduo de literatura e o
prático analista sabem o quanto “método” e “definição de literatura” andam
juntos. Quase que indissociáveis, pode-se afirmar. Podemos pressupor que
analisar é antes de tudo “comprovar” o valor e o sentido do discurso original
da arte literária. Atesta-se o valor em cada análise; contribui para sua
perpetuação semântica em cada nova leitura. Em suma, analisar é a prática mais
relevante de toda a atividade literária, depois da autoria, pois o poema só
pode ser considerado acabado depois de lido. Nas próximas páginas, dialogaremos
com os dois filões primordiais da estética artística literária, trançando os
fios que armam uma concepção legítima sobre arte verbal, bem como elucidando
alguns pontos que podem ser de grande valia aos iniciantes.
2. Desmistificando a Análise para
Mistificar a Poesia;
Mais do que o afã da leitura e das
“pseudo viagens” existentes dentro das análises literárias, existem elementos
que transmigram as potencialidades de um texto, no ato de seu processo de
desmaterialização e re-alocação em novos suportes.
Uma boa análise, então, não está
ligada tão somente a metadiscursos provenientes de uma bela dose de imaginação
e ousadia, embora esta esteja análoga ao aprofundamento do texto. É o que
ocorre quando o iniciante parafraseia o texto, decodificando um código
implícito e codificando em um código explícito.
Toda linguagem artística ou todo
discurso confeccionado a partir da re-elaboração do real, estão ligados
ao metadiscurso, que não é senão oriundo das intertextualidades
provocadas pela sistemática explicação do fato, seja teórico ou seja real. São
discursos por sobre discursos, cascatas de textos sobre outros textos, que vão
criando referências e criando análises. Escrever sobre algum ente artístico é
fazê-lo pulsar por sobre sua égide ente significativo e representativo. O metadiscurso entendido aqui pela ótica
de Barthes (1974), não é somente aquele que re-explica semioticamente o código
fonte, mas que explica a si próprio, como é de princípio da função poética[1]. Em
outras palavras, no ato da criação de um metadiscurso sobre o objeto literário,
a função poética, voltar sobre sua mensagem, também é o ato próprio de
voltar por sobre sua própria configuração, surgindo a possibilidade, sempre, da
função metalinguística, o que já era previsto por Jakobson em seu ensaio A
Dominante de (1954). Não só se evidencia os possíveis conteúdos do poema, como
também os possíveis recursos que foram utilizados para se obter tais conteúdos.
Além de ter a obrigatoriedade de falar sobre si próprio, o bom poema emite ao
interpretante um código anexo, uma faixa de discurso implícito que dialoga com
a concepção de arte. O processo ocorre como se o poema, além de significar
variadas porções de leituras, (polissemia devido à função poética), toma
partido da necessidade de se situar como arte, emanando implicitamente códigos
que possibilitam sua leitura como tal: em outras palavras é como se o poema
falasse, “olhe, perceba que antes de tudo, eu sou um objeto de arte, e para
tal, tenho uma configuração predestinada”. É o caso, muitas vezes, de discutir
se João Gostoso (Manuel Bandeira) é arte verbal ou não. Intrinsecamente, seus
recursos são construídos para que fujam à concepção de lirismo maculada pelos
manuais de retórica; mas o que acontece é uma inversão dos papéis, onde o eu
lírico surge narrado, como uma personagem de tiras jornalísticas, que poderia
deflagrar uma obra de pouco valor literário. Neste caso, os pesos da
metalinguagem e dos já referidos códigos anexos de artisticidade, são valiosos,
visto que pela ótica interior, o poema é individual e referencial, não podendo
estar alocado no seleto rol de obras artísticas. Estas exigem uma determinação
essencial de arte na atemporalidade e universalidade.
Mas a atuação dos códigos anexos, indica que a leitura é metafórica,
justificando: João Gostoso é uma obra de arte; portanto é universal; se for
universal, João “representa” a todos que convivem com os mesmos valores que
ele. Veja a importância do contexto no texto. Esta supremacia do
fator contextual sobre o textual, deu vazão às possibilidades de leitura que a
obra tem em não ser mais uma notícia de jornal, pelo simples fato de que o
autor não queria que ela fosse notícia e sim arte. Sendo arte, o comportamento
analítico é diferente.
Em linhas gerais, para o analista de qualquer obra de arte, seja clássica
(o que garante em termos sua classificação artística, forjada pela história
cultural) ou arte experimental (tem como princípio estimular a desautomatização) é de suma importância
reportar a leitura aos códigos artísticos primários, que sempre estão amarrados
ao princípio da criação e serão deduzidos extrinsecamente. Todo poema é arte
verbal, portanto compartilha valores semióticos gerais com todo o mural de
criação artística da humanidade.
Este dado torna-se salutar para
procurar na arte sua porção vital, seja na pintura, escultura ou qualquer
linguagem artística. Uma decodificação fluente dos sistemas simbólicos
artísticos, que muitas vezes estão escondidos dentro do discurso, é essencial
para construir análises que valorizem a linguagem em todos os seus âmbitos.
Digamos que todo analista de literatura é sobretudo um analista da arte, o que
exige dele o conhecimento dos valores primordiais para a compreensão da mesma.
Os dados semióticos sobre um referido objeto artístico são captados dos
princípios imutáveis, que agindo como categorias, não se dissolvem no espaço/tempo.
Como categorias, acho por bem a exemplificação de algumas:
A arte é sempre universal. A
projeção de um sistema simbólico pessoal e particular distorce as
possibilidades de análise, pois só poderão dar vazão quando o analista está
munido de correspondências contextuais fortes de pessoalidade autoral e
subjetividades que necessitam de descortinamento.
A arte é sempre atemporal. Um outro código anexo da arte é a
perspectiva de que a mesma tem de encontrar ambiente favorável de significação
em qualquer relação temporal. Isto porque sua estrutura primária, ou a mais
profunda como desejam, está alocada em relações e não em formas.
Uma relação é sempre possível de acontecer, não morre e não se dissolve
no tempo. Esta relação será ainda maior quando estiver possuída de conflito.
Mudando-se os termos, a estrutura relacional e conflituosa permanece sempre a
mesma. A arte verbal é uma miscelânea de conflitos, oriundos de vazões do
subconsciente artístico para um consciente coletivo, que é a linguagem. Greimas
(1994) tem estudado profundamente o peso das relações conflituosas determinando
algumas naturezas passionais, o que tem possibilitado estudos pertinentes sobre
a estrutura poética e nas relações universais de um proto-sujeito para sujeito-signo
e assim, para um sujeito-interpretante.
A arte é sempre original e
inovadora. A literatura rompe o discurso rotineiro e cotidiano, recriando
formas originais, que analogicamente propiciam romper o tempo e o espaço que
usamos como referência. Esta inovação constitui um estranhamento, conceito caro ao formalismo e ainda atual para o
estudo da literariedade. (EAGLETON, 1983)
3. Iniciando a Análise
O início da análise tende a ser o
momento mais complexo, pois permite variáveis ainda não reconhecidas e caminhos
textuais brevemente assistidos por uma parca leitura primária ou secundária.
Podemos afirmar que Interpretar é escolher, ou seja, trilhar um caminho
de textualidades que estarão unidas ao discurso projetado em nossos
pressupostos técnicos, subjetivos e conceituais. Iniciamos a análise tendo que
saber qual sistema interpretativo começar a trilhar.
Um discurso sempre está disposto a
significar algo. Ele pode ser encarado como um texto- signo em sua
unidade; e em sua estrutura inerente, formal e conceitual, um sistema- signo.
Isto quer dizer que como elemento global, ele representa algo a alguém,
possibilitando que neste afã de ser reconhecido, decodificado e utilizado,
produz no interpretante um novo signo, que deve ser construído em modo inicial,
pois a literatura não converge uma opinião uníssona, ela apenas sugere,
tal como em uma semiose ad infinutum. As teorias semióticas, embasadas
na escola de Peirce (1983), comprovam estas
visões, onde a validade do signo está gerida por sua possibilidade de
interpretação e representação.
Se considerarmos o texto literário
um texto signo, este objeto discursivo possui um interlocutor natural a
quem se refere, e não obstante a teoria da comunicação, o que veicula e como
veicula. Estamos entrando no caráter da intencionalidade textual, o
primeiro momento importante da análise, onde poderemos diagnosticar os motivos
do texto. Um texto sempre fala algo a
alguém. Um texto literário possui uma intencionalidade temática: eixos de
conteúdos que veicula e que podem ser trilhados pela análise. Separar estas
intencionalidades narrativas é o primeiro passo.
Até o presente momento é possível
perceber que antes de iniciar camadas de análise, é preciso diagnosticar os interesses do texto como ícone
representativo de uma dada realidade assistida e subjetivada pelo intelecto
criador do eu-autoral. Em
outras palavras, perceber na intencionalidade do texto, o que ele quer
veicular, discutir, sugerir ao interpretante. Podemos afunilar a questão
criando grandes áreas de interesse, que serão desdobradas em novas áreas e
assim em um processo contínuo.
Um poema ou texto narrativo poderá
estar situado em campos temáticos, que darão origem às análises. Podemos
compreender um texto, como modo exemplificativo, tentando enviar mensagens a
uma área definida e a um público definido. Assinalamos nossa decifração destes campos
através da reflexão que o texto promove. Ele pode estar voltado a algum
tema específico. A natureza do texto
literário está ligada à forma, em como ele se predispõem a ser condutor de
mensagens, e de como ele pode possibilita escolhas a quem o ler. Exemplos de
grandes campos temáticos:
Amor
– Amizade – Existência – Ontologias – Histórias – estórias –
Exemplos de instrumentos de reflexão
sobre outras plataformas:
A
condição estética – a linguagem literária – o fazer literário – a condição do
eu
Este breve resumo de campos
interpretativos ajudam a tornar a análise mais sólida, pois abre exatamente o
campo que deve ser galgado passo a passo. Nunca se inicia uma análise sem antes estipular o caminho interpretativo
que irá se seguir, pois seria andar em círculos, parafrasear a obra,
simplesmente descrevê-la.
4.
Os princípios
da Análise
A análise
tem cunho metodológico e sistemático. Ela descreve os processos e engendra
sentidos a esses processos. É o estudo de como aquele código consegue veicular
aquela mensagem. Ela parte dos componentes intrínsecos e extrínsecos da obra. Não é o
estudo do que se fala, mas do como se fala. (POUND, 2003)
Tendo em mente um caminho frente ao
sistema interpretativo, procura-se destacar os componentes textuais,
provocando-os a dar vazão à tese inicial reivindicada. Estes componentes são as
comprovações devidas para sustentar uma interpretação no ar científico. O início de uma análise literária é o mesmo
que iniciar uma expedição rumo ao desconhecido, tendo como plano de percurso
sua única instrução. Por mais que seja inóspito o caminho e desconhecido o fato,
sempre devemos saber para onde ir.
Podemos dividir a análise em
camadas textuais, abarcando toda a porção semiótica do objeto analisado. Como
propomos no início deste trabalho, o princípio do sistema comunicativo é a
primeira etapa. Para esta empreitada devemos engendrar uma atitude de analista por sobre um dado objeto
literário. Essa atitude de analista pressupõem, baseando-se na ideia de
escolha do caminho de análise, sempre em uma tese; como se diz na semântica
estrutural (GREIMAS, 1973), um sistema interpretativo que apraz todos os
desejos do leitor. Isto porque um
texto é aquilo que se escreve dele, visto que o sentido do código
artístico está no leitor e sua estrutura está no estudo que fazemos dela.
A análise possibilita a obra estar viva perante o imaginário do leitor e
desta forma, enriquecida pelas interpelações provocadas. Provocar é
uma reação natural de uma linguagem que não tem um fim pragmático, efetivo, e
sim que busca atrás de seu código um regime de significado concreto e limitado.
Assim, é possível afirmar que a linguagem literária assume, na análise, tanto
uma porção técnica, quando reconhecemos em seu bojo os elementos linguísticos
que dão o status de obra, como um
comportamento intuitivo, onde o campo sêmico revela possibilidades de ir além, provocadas pelo imediato
sentido sensorial, imagético e pré-simbólico.
A análise é um discurso efetuado por sobre outro discurso: não que o
primeiro tenha a intenção de parafrasear o código fonte, mas ao contrário,
explicar a linguagem utilizada pela arte, no momento que toda obra realmente
artística volta-se por sobre si mesma. Isto é inevitável. Por outro lado, a
qualidade da interpretação, permite ir além do significado, procurando
mais que novos semas, mas possibilidades de comutação e conjunção,
distanciado-se cada vez mais do concreto, em um processo de abstração que toma
direção infinita, e cada vez mais, próxima da subjetividade inerente à toda
leitura não voltada ao fato e ao referente.
5. O Ritual
Esta modalidade de aproximação subjetiva e latente de uma interpretação a
partir de signos que não tem em si a resposta, mas sim a potência de uma
resposta, permite aditivar no poema um caráter místico, no momento que a
construção de um amplo sentido, de uma convalidação de valor e mérito da obra,
advém da impregnação e atribuição de acreditar na linguagem como se ela fosse a
construção imaginária do ser; acreditar nela como resposta e como síncrese (TATIT, 1994) das emoções
humanas; em outras palavras, acreditar nela como se ela fosse a única maneira
de comunicação direta de emoções e aproximação das passionalidades e reflexões deflagradas em seu circuito de atuação.
O crítico, em primeiro lugar, mistifica a linguagem literária, já sabendo de
seu valor e de sua interação com componentes humanos que não estão literalmente
ligados com a efetividade: como amor, ódio, sentimentos, fé, liberdade e o
próprio conceito de arte. Por não estarem ligados empiricamente ao real
deflagram-se nas modulares visões dela própria.
6. Modulação
Muitas questões afloram do hiato insurgente entre o signo material,
organizadamente e simetricamente disposto na superfície do papel e todo o
horizonte da interpretação, aberto como que sangrando dentro da textualidade de
“um leitor” decifrador de dores, mágoas, cansaços e tudo que a literatura
alimenta como conteúdo dentro do conteúdo.
Sim, pois não podemos admitir que sociedade e / ou amor sejam conteúdos por
natureza da obra literária; dentro deles existem novos conteúdos, em
fragmentos, em pequenas doses deflagradas pelo tecido verbal. Este mistério
inquietante do processo de recolhimento desta réstia de sentido, ou aquilo que
dá sentido ao texto, fazendo-o soar exemplar, não escapa aos estudos
linguísticos. Qual o mecanismo que engendra o processo de desmaterialização da
forma para o conteúdo? Possibilita a câmbio do denotativo para o conotativo? Em
linhas gerais chamamos de modulação.
Tecnicamente, estudada com muito afinco por Greimas, na obra Ensaios de Semiótica Poética (1973) o
sentido despertado na obra, incitado e provocado pela leitura, se dá pelo
diálogo entre os semas (mínimas unidades de sentido). Este ato de exalar
sentidos que o contexto elocutório admite, está centrado por sobre o eixo das
contradições internas e seu despertar.
Já não é mal dito que o sentido surge na diferença (GREIMAS, 1973). Também
não é vão descobrir sentidos nas contradições internas do texto. Esta é uma
dica semiótico/semântica que deve contribuir a priori como primeira manifestação analítica. A modulação é
justamente este processo de evolução de um dado signo natural para o campo do
horizonte da interpretação. Linguisticamente, é quando o signo transpassa do
sentido denotativo (paradigmático) para o conotativo (relações de sentido
contextuais e virtuais).
Em sala de aula utilizei um signo comum “prego” para assinalar o processo
de modulação latente na linguagem literária. Em primeira instância teríamos o
lexema “prego” em seu sentido natural (denotativo). Um objeto pontiagudo com
uma superfície plana para receber o impacto que culminará em sua força de
penetração e fixação. É notório que esta visão linguística do signo prego pode
emular outras visões pela ótica tricotômica de Peirce (1983). Estas visões são outras maneiras de captar o sentido
e o grau de representação do real efetuado
pelo signo:
- uma sensação de rigidez, ou pontiagudo, que emana corte, perfuração; em
sentido quali (do campo das
percepções primárias) dor; rasgo, ou até mesmo força; (ícone / quali-signo)
- uma compreensão indicial; um componente da construção, da engenharia;
uma parte estrutural do alicerce da casa, a fixação das madeiras, do assoalho,
do madeiramento do telhado; (índice / sin-signo)
- ou uma compreensão social, por uma formatação grupal de clichê (gíria);
o “prego” como aquele “idiota”, o ser a
margem; limitações no cenário da juventude; o mal visto conjumina-se no prego;
(legi-signo / símbolo)
Note que sem a presença de qualquer contexto elocutório, o prego pode
adquirir várias performances semióticas,
que darão um amplo leque de convenções semânticas / semióticas para sua compreensão
e assim representação do dado real que ele deseja articular.
Quando em contato com outros contextos discursivos, este lexema “prego”
passa a dialogar com a carga semântica de outros lexemas, recebendo
infiltrações ou novas dimensões de significação. Observe o verso:
“O prego a elidir
a dor;
O prego a contornar
a fé”
O prego em sentido status quo, ou
em sentido de dicionário, contém semas que podem conectar-se com dor. Esta
relação é dada através da combinação de semas (pequenas unidades de sentido)
que surgem tanto das relações paradigmáticas quanto sintagmáticas, conceitos
terminológicos retirados da teoria Greimasiana
de sentido, em conjunto com os postulados tricotômicos de Peirce (1983):
“prego”
|
“dor”
|
Sema: //pontiagudo//
|
Sema: //machucar//
|
Sema: //perfurar//
|
Sema: //perfurar//
|
Classema: //perfurar//
|
|
Note que existe uma conjunção no eixo do sintagma
//perfurar//
Esta relação chama-se classema (o sema de classe)
|
|
Do ponto de vista actancial (a relação de ação preconizada pelo “prego”)
analisamos que:
|
|
“Prego”
ELIDE “dor”
|
|
Existe uma relação disjuntiva no processo: elidir
possui carga semântica de “diminuir”, “cortar”; Como o prego pode “diminuir”
a dor? Ele próprio possui semas que “adicionam” dor
|
|
Lexema: “prego”
|
Sema contextual: (constituído através das relações do enunciado)
|
-
|
//o prego diminui a dor//
|
Existe a necessidade de uma coesão semiótica: qual o outro signo que poderia nos dar mais
informações sobre esta questão?
|
|
“prego”
|
“Fé”
|
Semas: “Crença”; “Religião”
|
|
Para obtermos um painel completo das intencionalidades discursivas,
precisaríamos relacionar as informações do primeiro verso com o segundo; Para
isto, nos já abandonamos o plano discursivo a passamos para o campo
semiótico, do meta-texto construído
pelo texto principal. (uma espécie de
segunda camada discursiva construída somente pelos sentidos)
|
|
//o prego como agente de minimizar a dor//
|
//a religião//
|
//o prego da cruz de Cristo//
|
//cristianismo//
|
Vejam que o grau e modulação permitiu que aquele
“prego” aparentemente deslocado da coesão concreta, nos fala ao nível dos
sentidos; dialoga com a “dor” e a “fé” no campo do meta-texto; a cruz, a
imagem de Jesus Cristo crucificado, o legi-signo do Cristianismo (o símbolo
legitimado pela cultura) tem o prego como marca “indicial” (uma parte do
processo) à Jesus; Cruz; Prego
|
|
Prego
|
Ações: (actanciais)
|
//diminui a dor com Cristo//
|
|
//contorna a fé, como uma espécie de representação
máxima da redenção pela dor, pelo
sofrimento//
|
A semiótica não possui apenas a preocupação de descrever a estrutura dos
sentidos e explicá-la organizadamente em categorias. Bem, é natural que a
presença de categorias de sentido esteja proeminente. Observem no esquema:
Primeiro Nível: a percepção do
prego como causador da dor; sua imagem pontiaguda e forte na carne
(quali-signo); sua manifestação concreta enquanto objeto e discurso (sentido
denotativo);
Segundo Nível: o
“estranhamento” causado pela presença do “elidir” como contraste ao “adicionar”
dor; o prego diminui a dor: o lexema já não é mais o mesmo; ele já se apresenta
de uma forma polissêmica: que prego é este que diminui a dor? Mesmo que a
questão esteja ainda simplista, o contexto discursivo provocou um grau de
modulação nítido, abrindo mais possibilidades sêmicas ao prego.
Terceiro Nível: O prego
necessita de respostas para se sustentar em seu campo de representação; a
necessidade de uma coesão semiótica movimenta
nossas atenções a procurar mais informações; logo a encontramos no lexema “fé”;
que por emulação semiótica acaba linkando
a um novo discurso: o discurso cristão.
Neste, o prego atua como índice, fazendo parte do processo de crucificação de
Cristo, e conseqüentemente redenção. A entrada do discurso cristão como
meta-discurso, vem a fortalecer a tese semiótica de que não existe campo de
representação isolado. Todo texto literário é senão um grande hiper-texto, que necessita de fazer
“links” com novos textos para se estruturar e representar aquilo que foi
preconizado pela intencionalidade. Não poderemos deixar de citar que:
A obra literária e seus constituintes fazem parte de um todo muito maior,
onde ela é apenas mediadora e incitadora; entendê-la como núcleo de
novas interrogações é conseqüentemente motivo para reescrevê-la novamente. Esta
é a operação do meta-discurso. Não há signo sem outro signo. Não há texto sem
outro texto.
Quarto nível: O prego está
para o texto, assim como o está para o meta-texto “crucificação” como elemento
norteador do maravilhoso; através do
sofrimento do elemento simbólico, a que ele tem embasamento, bem como da
representação do crucificar / ressuscitar e de toda a tônica cristã, ele
adquire de modo endêmico uma carga semântica tal, que figura como espetáculo da
misericórdia (diálogo com a ideologia
cristã); um espetáculo do sofrimento e
do amor para a salvação de todos; sob
a égide da imagem cristã, já consolidada e simbólica (legi-signo), com toda a
sua força cultural e moral, toda a amplitude emotiva que a imagem releva,
podemos afirmar que o lexema “prego” passou por um processo de modulação tão
atroz, que de modo ventríloquo, trouxe a tona uma imensidão de novos discursos
e uma força poética extrema.
Estaríamos nos limitando se encerrássemos aqui a explanação sobre o ato
“modular” do texto poético. Adicione-se a isto a qualidade da elocução; ora, o fato do lexema “prego” estar
condicionado a um contexto poético, exalando sentidos através de seu grau de
modulação, tendo como categoria a exploração do maravilho e do sublime, é
perceptível o quanto ele adquire de expressão “bela”. Esta condição de
aglutinar sobre si informações semióticas de beleza, contribui para a
constatação artística do dado texto.
Resumidamente teríamos este pequeno painel: (de baixo para cima)
Grau 5. “prego” conotativo:
mudança total de sentido: provocação ao sublime; abertura de hipóteses;
polissemia; signo literário; (literariedade). Ele volta o ciclo todo de interpretações e pode soar “novo”,
dependendo das novas substituições;
Grau 4. “prego” conotativo: misericórdia / amor
Grau 3. “prego” conotativo: crucificação / redenção; imagem cristã; (diálogo
com o meta-texto Cristianismo)
Grau 2. “prego” conotativo: dor; sofrimento; teste;
Grau 1: “prego” sentido ambíguo: “crítica social em
gíria” (não é literário, pois não permite
significação
Grau zero: “prego” (sentido
denotativo): aspectos qualitativos (quali-signo)
Acima podemos vislumbrar vários pontos caros à teoria literária e
semiótica:
a)
Os graus de escritura em seu processo ascendente;
b)
A literariedade como capacidade discursiva de
“esvaziar” o signo e abri-lo a possibilidades;
c)
A modulação como processo de evolução semiótica / sêmica
do signo ao seu grau máximo de sentido e valor estético.
d)
A necessidade de encarar o texto literário como um hiper-texto, dotado de ramificações e links.
7. O processo de significação
Dois conceitos legitimam
o valor dado ao processo de significação que cita Barthes em sua obra Crítica e Verdade (1974). A semiose
é o processo coletivo de criação de
um sentido.
A obra, no ponto de
criação, acaba perdendo e distanciando-se do momento da enunciação e passa a
ficar ilhada no contexto de recepção, que será senão o próprio momento de
enunciação textual. Em outras palavras, após o momento do “parto” do texto,
enquanto portador de um sentido, ela passa a viver dependente de um
interlocutor e todo um contexto de interpretação, que está dado tanto pela crítica,
quanto pelo leitor comum, quanto pelo próprio painel discursivo (a interação
dos discursos). Desta distância inicial e final entre o momento da criação e o
momento da recepção, percebemos a obra como portadora de sua própria
explicação, ela, sozinha no espaço-tempo, tendo que se expressar sobre si
mesma, se auto-explicar, efetuando uma auto-reflexão metalingüística de seus
conteúdos e matéria estética. Esta solidão discursiva, permite que ela (obra)
se espalhe pelos vãos da compreensão, infiltre-se nos entremeios da história a
da sociedade, reproduzindo o que ela possui em categorias, ampliando seu
sentido através de um interlocutor ausente. Após a criação e em seu momento
ontológico, a obra possui oculta um autor e um receptor, estando existindo per si.
8.
Organograma de Atividades de Análise
1ª Tomada
|
2ª Tomada
|
Dicas
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ASPECTOS FORMAIS
|
Disposição gráfica do texto
|
Por que o autor quis colocar isto aqui?
|
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Ritmo; Sintaxe;
|
INTERPRETAÇÃO
|
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Melopeia: sonoridades
|
- O que a forma “projeta” de sentidos;
|
||
Versificação (classificação)
|
- quais os dados que ela me fornece para prosseguir
em minha “escolha” de sentido;
|
||
Escolhas morfológicas: ações; nominalizações;
caracterizações;
|
- qual a “hipótese” de leitura que irei desenvolver;
|
O resultado final é um relatório dissertativo:
|
|
Identificação do “Eu” poético
|
RESSALTAR A LITERARIEDADE
|
Introdução: o que descobri
|
|
- O que a obra tem de valor literário;
|
Desenvolvimento: comprovar
|
||
ASPECTOS DO CONTEÚDO
|
Figuras de Sentido
|
- quais os “códigos” visíveis de Arte, presentes no
texto;
|
Conclusão: fechar as idéias
|
Perversões Sintáticas
|
SISTEMAS SEMIÓTICOS
|
||
Imagens: logopéia
|
- posso conduzir a análise a uma leitura de outro
sistema semiótico: pintura; sociedade; vida; etc.
|
Sempre deve existir citações do texto para comprovar
minhas idéias;
|
|
Signos dominantes;
|
|||
Isotopias à
|
Relações sêmicas (semas) e novos sentidos (vertical)
Criação de elementos pré-simbólicos
|
||
Isotopias à
|
Relações sêmicas dentro do sistema; procura de
identidades
(classemas) sema contextual
|
||
O
Estranhamento – Relação Forma E Conteúdo – Dúvida E Ruptura
|
|||
Captamos o tecido verbal pela
apreensão: VISUAL; SONORA E CONCEITUAL;
|
9. Tipos de Leitura (Análises)
do Objeto Literário
Em nada os postulados ajudam se não tivermos uma perspectiva de análise
consolidada. Um viés nítido de abordagem, com especificações e objetivações
efetivas. Dessa forma, torna-se salutar a presença de algumas diferenças
essenciais entre atos de leitura e propósitos de análise. A análise é um
procedimento em si, mas que necessita de uma projeção potencial de objetivos,
de determinações que a tornem coerente e propositalmente prática. Vejamos três
definições de leituras propositais mediante a natureza da análise:
A Leitura Individual Realizável está
engendrada nas ações de interpretação (escolha e substituição). Pauta-se
na necessidade de decodificação, e portanto desmaterialização do código
lingüístico em seus desdobramentos possíveis; ela se identifica com a comprovação
e evidência dos resultados através de provas concretas retiradas por
meio de citações.
Existe uma manifestação própria da subjetividade, projetando
individualidades que cumpriram o papel da semiose, ou seja,
complementarão as lacunas do discurso literário, que sempre está comprometido
com a sugestão. Logo, uma leitura individual realizável deve
subentender um outro discurso sobre um primeiro (literário) que tenha
característica originais e contribua na visão de arte verbal como inovação das
cosmovisões. Não só propor interpretações (escolha), mas também sobrepor ao
resultado uma análise dos processos, em outras palavras, como aquilo disse o
que disse. Como a forma projetou o conteúdo resultante da visão
particularizada. A análise dos processos prevê métodos que vão desde a porção
material até as substancias semânticas mais complexas. A variedade e quantidade
de leituras individuais é que promove a continuidade do texto literário
através da descontinuidade dos discursos subjetivos, propagando a literatura no
vácuo cultural da inovação. Este processo tem relação estreita com a semiose
dos signos.
Por outro lado, a Leitura Instrumentalizada (recursos /
relação / sentido) pauta-se no uso de leituras teóricas exteriores ao
discurso literário. Pode estar comprometida com o período ou com as relações
contextuais da história. Comprova teses e embasa-se em movimentos estéticos
relativos aos estudos existentes. Usa a metodologia do intertexto, povoando a
análise de dados importantes ao comportamento do discurso. Também procura
avaliar e analisar a linguagem utilizada e suas estratégias discursivas
necessárias ao provento da literatura. Explicar o código literário, sua
formação material e abstrato, são denominadores comuns deste tipo de leitura. A
semântica estrutural possui um aporte interessante para o diagnóstico do código
literário, bem como noções de estética, filosofia, sociologia entre outros
cabedais teóricos.
Chamaremos a terceira de Metadiscursos
ou Ícones de Leitura. Isto porque faz uso de outros sistemas simbólicos
para efetuar leituras possíveis de uma obra literária. Um ícone de leitura
possui relação semiótica com um objeto literário, pois prevê novas situações
discursivas e elabora relações textuais a níveis de categorias e não somente de
conteúdos. Um discurso literário é sempre fruto de contradições externas e
internas. Dentro de um campo aparente (antíteses) que provocam no leitor
possibilidades sêmicas plausíveis de análise e leitura. A arte literária é
feita de contradições, descontinuidades e fluxos e influxos. O uso de
metáforas, símbolos, metonímias povoam este tipo de relação semiótica.
Povoando a tessitura discursiva, esta exemplarmente designativa ao signo
literário, temos as referências. Elas
sempre engendram outros discursos já estabelecidos pela cultura / história,
adotando-os como suporte de interpretação ou analogia primordial. Referências
ideológicas ou simplesmente alegóricas, estão inerentes ao processo de
nominação dos objetos que não existem, daquilo que é latente mas não é preciso,
ou daquilo que vive na potência do ato, no tecido das possibilidades. De modo
didático, teríamos nas referências o papel mais explícito do que a metáfora,
mas por outro lado, dependendo da qualidade de nosso leitor, teríamos
limitações referenciais, visto que para sua existência é mister o contexto cultural
simbólico.
Considerações Finais
A forma aparentemente caótica com que o desenvolvimento deste trabalho
está assentado, não necessariamente reflete ausência de propósitos didáticos. A
literatura não deve ser entendida como um objeto estanque, pautado em um
pragmatismo ideológico social meramente reprodutor de sua sociedade. Existem
processos complexos de recepção, significação, leitura, constituição, método e
teorização que completam um grande painel dos estudos literários, que a partir
de especulações latentes da lingüística contemporânea, semiótica e estética,
procuram elevar à poética ao grau máximo de composição artística, visto que a
mesma não está restringida ao tempo nem ao espaço. Ela permite-nos interpretar
a sim próprios bem como o nosso próprio tempo em categorias universais, tanto
de estruturação de um dado código verbal, como uma re-estruturação do próprio
pensamento.
Em suma, analisar é sair do grau autômato de parasita dos conceitos
segmentados, para a apreciação do novo e inconfundível ato de duvidar da
própria interpretação, de duvidar da própria maneira de escrever e ser escrito
enquanto crítico.
REFERÊNCIAS
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