A MULHER QUE ESCREVEU A BÍBLIA

por Rômulo Giacome

Publicado em 2000, este romance reproduz os dilemas de uma das 700 mulheres de Salomão, que descobre na escrita uma forma de se constituir como personagem inesquecível e inesgotável. 

A literatura contemporânea tem destas coisas... teorias sobre a linguagem e ideologias que o escritor tem que seguir para soar moderno...na crise do esgotamento dos fins do século XX e início do novo século XXI, bem nesta esquina da Crítica, 1999/2000, escrever um romance é antes de tudo por a prova uma cesta de teorias: pastiches, bricolages, pós-modernices e afins. E o romance fica ali, estático, esticado, cheio do botox facial de superfície sem sal...ou seja, que chato ler um romance na modernidade. Ele sempre tem cheiro daquilo que esperamos dele, e acaba por nos enganar no pior sentido. Mas Moacyr Scliar trouxe mais do que isso neste romance... e isso é muito bom. Bom demais. E a fórmula desse êxito está nos próprios ingredientes da modernidade, aplicados e não apenas “apresentados”. “Olha o kilo de pastiche aplicado aqui... olha a liquidez do amor aqui...”. A receita é uma narração desvairada de uma narradora em primeira pessoa cativante. Quase um standup veloz, como os nossos dias e leituras. A fórmula desse standup literário é simplesmente narrar os fatos históricos / bíblicos com porradas e tintas de sacadas sexuais geniais e muito mais. O flerte com a dicção do tempo presente, essa verve de usar o palavrão parnasianamente exato. Sim, temos um parnasianismo fescenino narrativo. E esta narratividade é constituída de silêncios ecumênicos que vão em uma linha tênue com a história e a recriação mágica da reconstrução dos fatos épicos em detalhes não pensados. Perpassando no templo de Jerusalém e as vigas do grande templo de Salomão, ao porte esguio e másculo deste rei mágico e sensual na visão feminina, de seu harém e os pombos que cagam em tudo, dando potência para: Adão e Eva fodendo em todo o paraíso sobre o olhar de Deus. Ler a Mulher que escreveu a Bíblia é fácil. Cada página é o prelúdio de uma surpresa diegética fugaz, mas interessante. Um detalhe que não pode passar despercebido e que não podemos deixar de lado. Este é o algo mais, inventividade, criação. Não só teoria pela teoria, catálogo de ismos e paradoxos temáticos. É a magia, o espetáculo do singular. Não que deixemos de lado alguns aspectos teóricos de alto valor. Aspectos da própria condição de modernidade. A linguagem pueril e juvenil e o foco na equivalência linguística, onde existe uma clara tentativa de inserir a linguagem coloquial e, muitas vezes vulgar, como uma introjeção de modernidade, ou atualização cronotópica das narrativas atuais que tratam de temas históricos. Esse fetiche pela linguagem comum, aliada à potência dos termos vulgares e chulos, desconstrói o grande palácio verbal, deturpa as verdades e generalizações formais que o clássico, o universal e outros marcas homogêneas da literatura dita canônica constroem em troca de nossa devoção e culto ao passado.  Na teoria dos jogos simbólicos, o esquema montado entre Salomão, nossa Narradora e os Anciões estabelece um dialogismo entre o moderno (dicção da Mulher), a tradição (os Anciões e sua legitimidade) e o leitor comum (Salomão), o mais difícil e ao mesmo tempo mais fácil de acessar. O crivo da legimidade histórica e bases de conhecimento dos anciões não potencializa a escrita como a inventividade de nossa narradora feminina, que afeta tanto os seus leitores. (um ancião com uma baita ereção por ter lido). De certo modo, a própria escrita do romance é uma subversão estilística do antigo, do legitimado pela história e tradição: os fatos bíblicos. Como em uma espécie de túnel levando ao fundo de si mesmo, temos o espelhamento da tradição bíblica desapropriada de seu lugar e tempo para a estilística moderna do século XXI. A mesma subversão estilística e ideológica que leva a Mulher a possuir seus espaços, a sair da zona de declaração da beleza para a contestação pela inteligência, escrita, estilo. Nada é gratuito neste romance. A injeção de humor calcada nas falas cômicas / sexuais é apenas um desvio de olhar, um filtro para ocultar algumas cores secretas, cores estas que devem sempre ser evidenciadas longe das esferas de poder da escrita: o papel da mulher, o papel do sexo e o que ele representa na humanidade, sua repressão, seu represamento para dissuadir o humano de sua causa perdida. Emulações claras e encenações para chegarmos, pela ficção, às verdades simbólicas mais caras. A relação da filha com o pai, da mulher com a beleza, da escrita com a ignorância, do casamento e a sociedade. Poderíamos enumerar inúmeros elementos contrários e contraditórios que estruturam a temática subterrânea da narrativa. Todas lambuzadas dessa aura Pop dos anos 2000, dessa necessidade de soar cult e jovem, de etiquetar o cool como forma de entender o fim do século XX e o início do novo milênio. Não fujam deste romance. Venham até ele, deleitem. A literatura da comédia é uma das maravilhas escondidas e perdidas na biblioteca de Alexandria. Bem como açoitadas pela academia. Aportem no melhor porto seguro do início dos anos 2000.

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