resenha "O NATIMORTO" DE LOURENÇO MUTARELLI (E O SEU LEITOR IDEAL)
por Rômulo Giacome
Ministrando a Disciplina de Estilística Literária na Universidade, convergimos, segundo a teoria de base (Pierre Giraud), em dois “olhares” epistemológicos sobre o ente artístico verbal: um primeiro individual, ressaltando os recursos e elementos expressivos possíveis de identificação e inserção dentro de um projeto de potencializar a expressão; mas por outro lado um método de análise denominado genético, que leva em conta elementos como história, sociedade, autor e que acaba por enviesar uma análise mais comparativa de estilos, sempre ressaltando a identidade pela diferença.
Levando mais a fundo esta
perspectiva genética ou contextual de análise estilística, devemos relembrar o
pressuposto básico e didático desta perspectiva, definido como: “os aspectos
externos à obra podem determinar a regulação, inserção ou exclusão de recursos
expressivos na linguagem da obra de arte”. Em outras palavras e como exemplo, o
autor tende a alterar e reconfigurar sua obra a partir de uma análise de seu
púbico e de seu tempo. Antônio Cândido já advogava por uma análise literária
que passasse pela tríade: autor, obra e público. O que hoje torna-se salutar,
imprescindível. Tendo em vista que muitas reconfigurações estilísticas e
estéticas, bem como o próprio teor da arte está ligada ao que chamamos mercado
editorial.
Assim, a produção de Literatura,
grosso modo e sem uma acuidade desta afirmação, passou historicamente
procurando seus interlocutores / leitores ao longo de sua trajetória de obras;
seja no prelúdio clássico, que a Arte Literária procurava uma minoria de
leitores do Latim ou Grego, seja na antiguidade média, onde os leitores estavam
mais localizados nas zonas de poder econômico detentoras do papel, assim como o
teatro evoluiu por não necessitar de outro material gráfico; mas a arte verbal
passou a sofrer demasiada influência estilística quando da invenção da Impressa
/ Arte seriada.
Isto porque uma instituição de
variadas facetas: econômica, editorial, ideológica, etc veio crescendo e
tomando todos os espaços indecisos da arte, assim tal qual um rolo compressor e
uma bússola, direcionando caminhos. Esta instituição chama-se Mercado
editorial. E este mercado, campo gigantesco, torna-se um outro ponto de análise
dentro das possibilidades artísticas da linguagem verbal, que, felizmente ou
infelizmente, tende a atendê-lo na maioria das vezes.
Machado de Assis, Euclides da Cunha,
Graciliano Ramos, para citarmos alguns, conheciam muito bem o prenúncio deste
mercado, pois assim como dezenas de outros escritores brasileiros atuavam em
Jornais e Revistas, reconhecendo e estudando as bases do Mercado Editorial,
como público, e mais especificamente o Leitor.
Quanto a estes escritores, no auge
de sua produção, não pensaram e reconfiguraram seus estilos, recursos
expressivos ou até mesmo a língua, para obter maior êxito neste Mercado?
Poderíamos até compor um binômio antitético posterior ao Igreja x Obra, Autor x
Sociedade: poderíamos compor o binômio obra X público. Mais especificamente,
obra x leitor.
Seria possível inferir que com a
ausência de um mercado editorial coibidor e recessivo, o autor tem mais
liberdade de usar os recursos expressivos e ousar? Inclusive buscando a
universalidade? Isto porque ser universal pressupõem falar todas as línguas na
sua; usar todos os recursos possíveis e impossíveis e possibilitar
reconstruir-se enquanto linguagem em outra mente.
Mas engendrando esta base de
discussão em Lourenço Mutarelli e sua obra O Natimorto, o que temos? Por que
escolher o viés do Leitor para analisar esta obra? Em primeiro lugar porque é
um texto já nascido nos tempos pós-modernos, aqui entendido como um tempo ainda
mais avançado do que aquele dos anos 60 e 70. Isto porque nos anos 60 e 70, no
auge de um formato revolucionário de escrita, já visava um tipo de leitor:
engajado ou não, jovem ou de formação jovem e muitas vezes não conectado ao
mundo acadêmico e político do beletrismo. Inicia-se a cultura do consumo da
arte, onde se verifica alcance, audiência, amplitude dos leitores, e para isso
a reconfiguração da escrita e seus recursos é salutar: daí que vem a poesia
marginal, o cartoon, as charges e as revistas fanzines etc.
“O Natimorto” já vem em uma outra
onda ainda mais forte, como afirmamos, pós-moderna em alguns sentidos. Não
porque achamos a palavra pós-moderna (ver artigo Pós-Modernidade Literária) o melhor adjetivo ou conceito do mundo.
Mas sim porque cabe, neste contexto teórico, por conta de dois fatores: a
fragmentação do eu discursivo que está em consonância com a crônica do tempo
presente; e o diálogo com outros suportes, mídias e gêneros textuais.
A sinopse da trama da obra é
simples: um agente de talentos, nosso protagonista e narrador, recebe uma
cantora lírica, que, segundo ele, tem uma voz divina; esta cantora terá um
encontro com o Maestro, personagem secundário que irá recebê-la e avaliá-la.
Neste meio tempo, a “Voz” irá almoçar na casa do nosso protagonista, onde a
esposa os esperam com o almoço. A partir daí ocorre os desencantamentos: a cantora
que não canta nada para os outros; o protagonista que foge; uma esposa que se
mostra outra pessoa.
“O Natimorto” é uma obra escrita em
2004, celebrando as possibilidades gráficas de layout, design e ilustração
trazidos pela Internet e sua popularização. Esta década, marcada pelo acesso à Web
e seu universo de informações, principalmente visuais, torna a linguagem Pop
com poderes quase ilimitados. E Lourenço é ilustrador renomado, já conhecedor
da linguagem gráfica, o que dá um tom ao Livro, mesmo que de modo tímido. Lemos
com a ideia gráfica na cabeça, seja pelas pequenas inserções, seja pelo
pragmatismo da sua escrita.
Os gêneros textuais se misturam aos
suportes; O Natimorto tem a forma de enredo / roteiro / drama / tragédia
pré-anunciada; que cai como uma luva no caleidoscópio das facilidades de
suportes hoje. É possível encená-la, dramatizá-la e roteirizá-la, já existindo
quase tudo isso dela; peça, filme e documentário; são as espécies de
sub-narrativas da proto-narrativa, os seus desdobramentos, incitadas pela
primeira. A primeira vista o nosso leitor tem e deverá estar antenado a tudo
isso, mesmo que não precise; este leitor se determina. E basicamente esta
linguagem iconográfica atende aos jovens da Geração 2000, e também aqueles que
aprenderam com ela.
Mas Mutarelli também flerta com a
meia idade; aquela da fragmentação e diluição, embebida pelos mimos da geração
2010. A adolescência do futuro é aos 40. A divisão de mundos; e nosso
protagonista reflete esta dualidade: entre nascer, respirar, pagar contas e
morrer, ou viver embebido na arte e na liberdade, com quem queremos e expomos
quem realmente somos;
O nosso agente de arte protagonista se
constrói oculto em suas teorias sobre as capas dos maços de cigarro e o Tarot,
jogo de cartas que profetiza o futuro; esta arte semiótica de ler as capas de
maços de cigarros e associá-las às cartas do jogo profético, enseja a codificação
do “ser” em suas outras facetas, proibido que é frente ao poder da esposa, que
surge no romance nos momentos iniciais, mas depois tem sua presença simbólica. O
jogo do acaso engendrado pela compra do maço de cigarros e a expectativa de
qual figura tem no verso, é a própria leitura singular da vida pela ótica visual
da iconografia do dia a dia. Das crônicas anunciadas.
A busca do Leitor do romance “O
Natimorto” coincide com a própria busca do público da “voz” personagem feminina,
que está em fase de crescimento artístico e procura um contrato.
Mas comicamente, sua voz é tão sensível
que só quem a escuta é o nosso protagonista, o agente artístico. Nem sua
esposa, que movida pela ira do ciúme pede que ela cante, não saindo voz
nenhuma; quanto o próprio maestro (personagem importante com quem a voz tem que
conversar para conseguir seu contrato). Colocada em uma posição constrangedora,
nossa cantora é posta para cantar, mas é ridicularizada em face das pessoas não
escutarem o som de sua voz. (apenas o movimento da boca).
Uma abordagem associativa icônica e
indicial ocorre quando o protagonista constrói as relações entre as capas dos
maços de cigarro com os arcanos do Tarot. O Natimorto; (a imagem do bebê). O
entubado (o homem com aparelho respiratório); O impotente. (a mulher que olha o
homem ineficiente). Importante identificar a relação entre as linguagens; as
estórias contadas pelo agente para a voz; a iconografia dos maços de cigarro; e
os arcanos do Tarot. Tudo compondo um diálogo intersemiótico, contrapondo-se em
valores e práticas humanas desfragmentadas.
Por fim, ficarem presos dentro do
apartamento, sem sair e gastar energia com a vida, frutos do embate com a verdade
do mundo; um ajudando o outro na miséria da condição humana, escondidos e
maculados pelas estórias não verdadeiras, como a fuga moderna de tempos
interessantes. O ser se escondendo dentro de suas verdades e teorias (pós
verdades?). Além de tudo isso, Mutarelli acena à uma teoria conspiratória, como
o fez no livro “A arte de produzir efeitos sem causa” Resenha aqui. Mas esta teoria conspiratória
o leitor deverá encontrá-la por si mesmo.
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Contos sugestivos para análises estilísticas:
Abordagem Estilística Individual
Conto Alexandrino (Machado de Assis)
A nova Califórnia (Lima Barreto)
O homem que sabia javanês (Lima Barreto)
A caçada (Lígia Fagundes Teles)
A outra margem do Rio (Guimarães Rosa)
Abordagem Estilística Genética (Contextual)
A língua do P (Clarice Lispector)
O homem que viu o lagarto comer o seu filho (Ignacio de Loyola Brandão)
Qualquer um do Livro "Morangos Mofados" do Caio Fernando Abreu
Qualquer um do Livro "O vampiro de Curitiba" Dalton Trevisan
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Contos sugestivos para análises estilísticas:
Abordagem Estilística Individual
Conto Alexandrino (Machado de Assis)
A nova Califórnia (Lima Barreto)
O homem que sabia javanês (Lima Barreto)
A caçada (Lígia Fagundes Teles)
A outra margem do Rio (Guimarães Rosa)
Abordagem Estilística Genética (Contextual)
A língua do P (Clarice Lispector)
O homem que viu o lagarto comer o seu filho (Ignacio de Loyola Brandão)
Qualquer um do Livro "Morangos Mofados" do Caio Fernando Abreu
Qualquer um do Livro "O vampiro de Curitiba" Dalton Trevisan
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