A TEORIA DA LINGUAGEM DE WALTER BENJAMIN E A REFUTAÇÃO DO SIGNO LINGUÍSTICO

Rômulo Giácome de Oliveira Fernandes

Texto produzido na disciplina de Doutorado intitulada "Aspectos da Crítica Literária em Walter Benjamin", ministrada pelo professor Dr. Orlando Nunes de Amorim, a partir da leitura do ensaio "Sobre a Linguagem em Geral e sobre a Linguagem do Homem", parte da obra "Escritos sobre mito e linguagem".  


O presente texto parte da leitura do escrito intitulado “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem”, de 1916, que trata das ideias de Benjamin sobre a linguagem, passeando por sobre as águas do misticismo de origem judaica e navegando por uma proposta conceitual sobre a comunicação, levando em conta lógicas e suportes diferentes daqueles montados pela Linguística saussuriana e os estruturalistas posteriores.
A problemática central recai sobre a refutação do signo linguístico como meio de comunicação, canalizando a substância, ou essência “espiritual”, que o homem procura exprimir enquanto ser comunicável e comunicador. Esta essência espiritual, que aqui pode ser entendida como “conhecimento”, “inteligibilidade”, e não uma noção simplista de religiosidade ou misticismo. Para postular sobre esta negação da instrumentabilidade do signo enquanto meio, ele configura uma outra ideia de “meio”, construída sobre a plataforma do imediato e da essência linguística que tem as coisas. De base do idealismo alemão, Walter Benjamin vai tratar de uma comunicação pelo estabelecimento de um conceito de “medium", termo que será melhor tratado na sequência do texto. Por outro lado, a generalidade humana do comunicável, estará ligada ao potencial único que o homem tem de ser de linguagem, que mais se aproxima da essência linguística e da essência espiritual, traduzindo este paradoxo no grande dilema de sua teoria. Isto se dá porque o homem tem a língua como interface desta essência espiritual e linguística. E isto se apresenta de maneira contundente no ato de nomear, que remonta a passagem adâmica e a própria criação do mundo no texto bíblico de Gênesis. Nesta conexão do ato de nomear e chegar ao nome único, adâmico, que mais de aproxima do criador, a poesia tem aproximação inevitável, pois é ela, em linguagem de elevação secundária, que intenta re-nomear a fim de criar o novo, e fundar o evento literário original: o nome.
Tendo em mente que a plataforma filosófica que Benjamin trabalha é o idealismo, é salutar entender a máxima desta filosofia na seguinte premissa: “se eu não conheço, não existe”. Esta necessidade da presença da subjetividade humana em qualquer representação da realidade torna-se salutar para entender os conceitos de Benjamin discorridos em seu ensaio.
Primeiramente, quando afirma que “Não há evento ou coisa, tanto na natureza animada, quanto na inanimada, que não tenha, de alguma maneira, participação na linguagem, pois é essencial a tudo comunicar seu conteúdo espiritual” (BENJAMIN, 2011, p.51) ele reinvindica o estatuto de presença humana em todo o processo de entendimento e comunicação com a realidade. E mais, acentua a importância da linguagem como meio de entender a própria existência do homem e das coisas.
“Uma existência que não tivesse nenhuma relação com a linguagem é uma ideia; mas nem mesmo no domínio daquelas ideias que definem, em seu âmbito, a ideia de Deus, uma tal ideia seria capaz de se tornar fecunda”. (BENJAMIN, 2011, p.51). O imbricamento da linguagem na real condição de inteligibilidade do real ou da própria abstração, se traduz na definição de que a linguagem não está fora das coisas, mas está nas coisas. Assim, o signo, enquanto instrumento e mecanismo de representação da linguagem, é uma visão deturpada da própria realização da linguagem enquanto todas as coisas. As coisas não precisam de intermediários para comunicar-se, nelas próprias existe a porção de essência linguística que as tornam comunicáveis. A clarividência desta formulação advém do que Benjamin fala da língua alemã e, modernamente, da posição do sujeito discursivo dentro e na língua.

Isso significa que a língua alemã, por exemplo, não é, em absoluto, a expressão de tudo o que podemos – supostamente – expressar através dela, mas, sim, a expressão imediata daquilo que se comunica dentro dela. Este “se” é uma essência espiritual. (BENJAMIN, 2011, p.51).


 Todas as coisas comunicam sua essência espiritual porque possuem uma essência linguística que lhes torna comunicáveis. É importante salientar que esta essência espiritual não pode ser confundida com “espiritualidade”, mas sim com “inteligibilidade”, aquilo que pode ser cognoscivo, inteligível e comunicável pela essência linguística.  
Separei alguns trechos de Benjamin para dar lume ao argumento exposto: “A linguagem comunica a essência linguística das coisas. Mas a manifestação mais clara dessa essência é a própria linguagem” (BENJAMIN, 2011, p.53). “A essência linguística das coisas é sua linguagem”. (BENJAMIN, 2011, p.53). Neste diapasão entre essência linguística das coisas ser sua linguagem, traduz-se, por uma leitura minha, em que todas as coisas possuem sua própria essência linguística, que contidas nelas, constituem linguagem. 
Como a essência linguística comunica a essência espiritual das coisas, distinguir as duas essências é um paradoxo que Benjamin afirma não necessitar desvendar. Ao clarear, o máximo possível, esta relação, que parece tautológica, estaremos desenvolvendo uma filosofia da linguagem. “A diferenciação entre a essência espiritual e a essência linguística, na qual aquela comunica, é a distinção primordial em uma investigação de caráter teórico sobre a linguagem”. (BENJAMIN, 2011, p.52).
É neste momento que devemos chegar ao ponto crítico da teoria de Benjamin, que logo permeará a refutação do signo linguístico de maneira explícita. Isso se dá justamente quando o autor afirma que a comunicação não se dá através da língua, mas na língua. “É fundamental saber que essa essência espiritual se comunica na língua e não através da língua. Portanto, não há um falante das línguas, se se entender por falante aquele que se comunica através da língua”.  (BENJAMIN, 2011, p.52).
Assim, o caráter imediato (conceito caro e desdobrado na teoria de Walter) da comunicação é preconizado em detrimento de uma visão instrumental de linguagem. A linguagem fora das coisas é a utilizada pelos signos, seres externos que comunicam pelo através e não na. Esse imediatismo é nomeado como meio (medium). A linguagem está nas coisas porque delas prescindem imediatamente o que é comunicável, sendo extensivo a elas sua porção de essência linguística.

Dito de outra maneira, a língua de uma essência espiritual é imediatamente aquilo que nela é comunicável. Aquilo que é comunicável em uma essência espiritual é aquilo no que se comunica; o que quer dizer que toda língua se comunica a si mesma. Ou melhor: toda a língua se comunica em si mesma. Ela é, no sentido mais puro, o meio [Medium] da comunicação. (BENJAMIN, 2011, p.53)


            É neste momento que fica inscrito na teoria de Benjamin (2011) a noção de “Medium”. Ele concentra em si a noção de “meio” e “imediato” “direto”, uma vez que, nas coisas, diretamente nelas, concentra-se o que lhes é de comunicável, sua essência linguística. Porque este imediato? Este caráter imediato e contínuo tem suporte no enquadramento que Benjamin concede ao pressuposto de que a essência linguística do homem está no fato de que ele nomeia as coisas.
            Esta ideia de nomeação perpetrada pelo homem é a base de um raciocínio que coloca a essência linguística do homem como a sua língua. A essência espiritual do homem só pode ser expressada e comunicada pela língua, que por sua vez é feita de palavras. Assim, o homem comunica sua essência espiritual ao nomear todas as coisas (na) língua. É importantíssimo levar em conta este “na”, porque nele estão contidas afirmações contundentes da teoria da linguagem de Benjamin: o primeiro é que a comunicação se dá na língua e não através dela; segundo, isto implica dizer que a língua é a essência linguística do homem, visto que o homem nomeia as coisas pela língua, e o ato de nomear é pleno e exclusivo do homem; e terceiro, por não necessitar de usar a língua fora dele para se comunicar, uma vez que o homem é a própria língua (está na língua, pois sem ela nada seria inteligível), ele não precisa dos signos e outros instrumentos que consideram a língua fora do homem e de sua essência linguística. Assim, refuta-se fortemente a teoria dos signos tradicional. E Benjamin ainda provoca, criticando veementemente determinada visão da linguagem como “concepção burguesa da linguagem”. Vejamos estas considerações ao próprio pensamento do autor:

Quem acredita que o homem comunica sua essência espiritual através dos nomes, não pode, por sua vez, aceitar que seja a sua essência espiritual que ele comunica, pois isso se dá através de nome das coisas, isto é, não se dá através das palavras com as quais ele designa uma coisa [...] Tal visão é a concepção burguesa da linguagem, cuja inconsistência e vacuidade devem resultar cada vez mais claras [...] Esta visão afirma que o meio [mittel] da comunicação é a palavra. Seu objeto, a coisa; seu destinatário, um ser humano. Já a outra concepção não conhece nem meio, nem objeto, nem destinatário da comunicação. Ela afirma que no nome a essência espiritual do homem se comunica a Deus. (BENJAMIN, 2011, p.55)     

            Esta citação é emblemática. Nela edifica-se a grande diferenciação entre [medium] e [mittel]. De modo simplório e no lastro das relações conceituais acima, mittel está para a relação de através da linguagem, enquanto que medium está para o na linguagem.  
            É importante salientar que o ato de nomear é próprio da língua e do homem. Ao nomear o homem aproxima e integra as coisas ao seu mundo de representação, e elas passam a ter sentido. O nome possibilita a existência cognoscível das coisas dentro do círculo da língua, pois é próprio círculo que homem vive, dentro da sua consciência.  Assim, esse está na língua e está na comunicação, faz com que não exista designação de palavras judicando coisas, mas sim o nome que em si é parte linguística e existência, concomitantemente. Por outro lado, esta porção de essência espiritual do homem dialoga com a existência do tudo, simplesmente porque este círculo do tudo faz parte de um todo comunicável acessível ao homem, em que nele as coisas fazem sentido. Talvez, indo muito longe, a linguagem organiza a compreensão humana, e neste ato de nomear as coisas enquanto fazê-las reconhecíveis ao ser humano, conhecemos até onde a linguagem alcança, vemos até onde os olhos da língua nos possibilita enxergar, até onde foi nomeado.
            Uma referência que devemos lembrar e evocar, traduz em melhor linha de raciocínio uma síntese até o presente momento.

Como a essência espiritual do homem é a língua mesma, ele não pode se comunicar através dela, mas apenas dentro dela. O nome é a condensação dessa totalidade intensiva da língua como essência espiritual do homem. O homem é aquele que nomeia, isso reconhecemos que por sua boca fala a pura língua. Toda a natureza, desde que se comunica, se comunica na língua, portanto, em última instância, no homem. Por isso ele é o senhor da natureza e pode nomear as coisas. (BENJAMIN, 2011, p.56) 

            O caminho percorrido por Benjamin nessa imbricação do ato de nomear, como a máxima da sua teoria da linguagem, também é um caminho fértil para contrapor a linguagem poética. Entendendo a poesia como um novo renomear, a problematização cabível nasce na esteira de outra problematização proposta por Benjamin ao estudar Gênesis. O nomear em suas fases da humanidade e de sua história metafísica.
            O primeiro poder criador do nome esteve em Deus no ato da criação do mundo. Deus falava e fazia, e também nomeava. Quando adão foi concebido, nomeou as coisas pela primeira vez, e elas fizeram parte da criação, assim como a criação de Deus, a criação do homem esteve ligada ao ato de nomear. Adão podia nomear e a palavra adâmica é o ponto original da língua e da linguagem. No entanto, o ato judicativo da árvore do bem e do mal, propôs a esta linguagem substantiva, predicativos que a tornaram distante do nome original, desfacelando-a nas ínfimas possibilidades semânticas, estilhaçando-a e propondo um nome enfraquecido, que tem como marco o pecado capital e a descoberta do bem e do mal (na verdade, a descoberta do poder judicativo que o nome possui e não era visto; o nome passou a ter valor e juízo, e logo nasceu o bem e o mal).  
            Por fim, de modo sintético e sem responsabilidade pontual, a ordem Babélica (a inscrição da torre de Babel e a divisão das línguas) propôs em definitivo o distanciamento do nome original, aquele nome que se comunica diretamente com o criador, com o ponto primeiro, o momento mágico original (mágico no sentido de imediato e não de sobrenatural).
            Assim, destituído da ordem essencial, tanto do ponto linguístico quanto espiritual, a linguagem de hoje tem em sua inscrição do nome, o preceito da divisão e da incompreensibilidade plena, gerando a dicotomia conotação e denotação.
            A poesia tem a responsabilidade de restituir ao nome seu ponto original na arte e pela arte. Assim como, para Benjamin, o ato de nomear o filho pela primeira vez remete a Adão quando nomeou Eva e todas as coisas que podia, o nomear o filho é um ponto original, um marco que remonta a forma pura do “nome”.
            A poesia intenta re-estabelecer o “nome” original, o nome novo, que sobressai ao desgaste natural da língua, que intenta ser signo e que na verdade deve ser matéria espiritual, matéria reconhecível e intensa, que, por comunicável, estende-se essência espiritual e linguística em um só corpo, constituindo uma essência estética, que é o vergar da linguagem por sobre sua própria intensidade comunicativa, entre o comunicar (a essência espiritual do homem) e ser língua (essência linguística). Em momento posterior a proposta é conectar estas problematizações à poesia brasileira, levando em conta o processo de criação de João Cabral de Melo Neto, principalmente em sua permanente tentativa de re-nomear a palavra em busca de nomeá-la pela primeira vez, a (dês)referencializando-a e destituindo-a dos sentidos atribuídos e resgatando os originais, sua origem ôntica e remota.  
            Por fim, é imprescindível fundamentar, de modo ainda mais contundente, a refutação do signo por parte de Benjamin, quando ele ressalta esta visão burguesa de língua que instaura uma forma fora dela mesma para conceituar a linguagem.
A palavra humana é o nome das coisas. Com isso, não vigora mais a concepção burguesa da língua segundo a qual a palavra estaria relacionada à coisa de modo casual e que ela seria um signo das coisas (ou de seu conhecimento), estabelecido por uma convenção qualquer. A linguagem não fornece jamais meros signos. (BENJAMIN, 2011, p.62)

            É aqui que ocorre o ápice desta divergência clássica, entre a linguística de cunho estruturalista e fenomenológica, que estabelece, entre tantos princípios e marcas, a máxima de Saussurre, a arbitrariedade do signo. Ou seja, que a relação que conecta o signo à coisa foi estabelecida por uma convenção ulterior à própria linguagem, e que Benjamin evoca como falsa. Para Benjamin, não existe uma determinação que arbitrariamente anunciou o que seria signo “do que”, mas sim que a palavra, o ato de nomear, é que produziu esta conexão e indexação entre a palavra, às coisas e o espírito humano.
            Não que esta visão de linguagem adotada e postulada por Benjamin seja determinante e conclusiva, ou que deva substituir a visão anterior. Mas sim que abre a possibilidade de problematizar a linguagem por vórtices antes não pensados, e estabelecer mais uma conexão de conhecimento sobre um tema que si mesmo é paradoxal: como discutir um objeto usando os termos do próprio objeto?

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, W. Escritos sobre mito e linguagem. Ed. J M Gaguebin. Trad. S K Lages. São Paulo: Duas cidades/34, 2011.

Comentários

Anônimo disse…
Benjamin em tempo real! Esse é o verdadeiro realty show!
Perfeito! texto esclarecedor!
Obrigada por compartilhar!