VIAGEM SÃO PAULO E MATO GROSSO DO SUL (JANEIRO/2008) - CORUMBÁ E UMA HISTÓRIA ADORMECIDA

Este é um relato de viagem, ao estilo on the road, de vivências e reminescências, das paisagens naturais e humanas, das histórias e estórias, não nesta ordem, da viagem que fiz a Corumbá, Mato Grosso do Sul, em 2008. Envelhecidas nos barris e porões da memória, agora elas voam soltas na esteira do papel on line.

Corumbá, quatro de janeiro de 2008. Este foi o destino escolhido e a data escolhida para mais uma viagem ao estilo on the Road. Deixar cair o relógio e imaginar o tempo apenas em seus momentos necessários e contextuais: fome, alvorecer, entardecer... se a viagem é boa, o momento inesquecível, o tempo não tem número. Somente ir e não mais voltar. E a estrada de Corumbá é uma ida, entrada, para algum lugar novo. Seja pela geografia, seja pela nomenclatura desta geografia e suas atribuições ecológicas. Enfim, de saída da cidade de Miranda, duzentos quilômetros nos separaria, trilhados em um belo asfalto e uma paisagem que iria se consolidar verdadeira: o pantanal. Nos primeiros quilômetros, o nosso golf 2002/2003, preto, totalmente preto, consumia estrada, bebia e absorvia espaço... mas não corríamos, era nossas vistas que corriam nas pastagens, pastagens sem cercas... era realmente o Pantanal. Uma espécie de império de pássaros grandes, brancos, que faziam ninhos pendurados e bebiam em grandes lagos, meio secos, mas lagos que foram um dia. E o verde deixava árvores ramosas, grandes, joshuas brasileiras, viscerais, com pássaros e mais pássaros brancos em suas copas. O painel do carro se comunicava e integrava a visão do viajante. O seu carinho com a máquina. Ser de músculos de ferro, aço e parafusos. Líquidos fluídicos percorrem o bólido, sinais elétricos perfilam instruções pelas artérias de sinais e cabos... e a máquina congratula a vitória de cada explosão em seu interior, pelo coração e pistões... e o golf preto iria contar a sua história, em outro momento, fatal e final, em outras mãos, anos depois(...)


                Em velocidade de cruzeiro, sinalizamos um pequeno animal morto na borda da estrada. Parado, a estrada é real. Andando, a estrada é uma ideia, uma noção de duas linhas imaginárias que devemos nos limitar. Paramos o carro a frente de uma ponte seca, sob um pequeno vale. Desprotegidos pela artificialidade do carro e sua capa, os sons, cheiros e sensações tornam-se vivos e próximos. O pantanal havia saído do corpo. Deitado no elevado da ponte, sob o concreto quente, jazia, em decomposição, um lobo. Segundos atrás ele cruzava o asfalto, quando suas pupilas perceberam os sons que vieram da árvore latente da fronte. Um bico arguto molestou sua vida, e tendo que agonizar, preferiu, por ainda, subir no elevado de concreto da ponte, elevado que margeia a cerca de concreto. Na horizontal, colocado desta forma pelos pequenos animais que espreitavam, deixavam o signo incólume: a natureza e sua representação.


                O cenário só prescindia de tropeiros. Estes mesmos seres que frequentam o imaginário goiano e sul grandense. Que não são os mesmos em Mato Grosso, reduto mais motorizado. Difícil conseguir esta verdade e legitimidade dos tropeiros, e eis que, neste cenário real, irrompem à frente. Primeiro como pequena sombra, depois como pontos marrons no contraste dos pontos brancos do gado. Bastante gado, atravessando a estrada, derrubando grandes fezes verdes sob o asfalto limpíssimo, negro e recém pintado (faixas cotínuas). O gado abria para os lados e depois voltava para o centro, concentrados em comer. Os tropeiros têm um instinto natural de organização. As coisas dão certo porque simplesmente acontecem. Em uma mágica hipnose de décadas, cada tropeiro consegue atingir sua missão sem planejar o ato. A execução é a música do performance, ou o nado para o nadador. Executa-se. Abrindo caminho pelo gado e pelos tropeiros, ainda pude ver o olhar assustado do cavalo, que ainda não acredita que os tempos mudaram e a poesia da distância terminou.

                Depois de algum tempo, a estrada perpendiou e eclodiu em uma elevação, que se fez maior e deixou aparecer uma grande e bonita ponte. (as pontes são as obras primas das estradas, incluindo aí as curvas margeadas por montanhas, e árvores que invadem a pista por cima, encobrindo-a como um toldo, como as que vi de Comodoro a Pontes e Lacerda, ou de Angra dos Reis até Paraty). Ao lado direito desta ponte, entre a tensão de dirigir sobre ela e a ótica da cena, percebi o grande rio Paraguai, imponente, das chalanas e da história, da pesca, do seu valor, serpenteando um planalto não muito largo, e nem muito alto, mas que era extremamente longo, que fugia pelo lado direito perfurando o horizonte a ainda ia mais, este planalto montanhoso, que dá lá pelas bandas de Cárceres, Mato Grosso. Olhei-o pela ponta que sempre queria olhar. Do ângulo que já lhe vi várias vezes, de lá, Cárceres, para cá, agora eu podia olhar do outro lado, sempre o lado mais misterioso e imponente. Olhar o rio Paraguai do lado onde ele é mais rio. De Corumbá para lá. Agora o lado de lá era o lado convencional.
                

A chegada em Corumbá foi marcante. Uma cidade com seu povo próprio. Homens e mulheres, amorenados e de traços fortes, pernas grossas e mãos grossas. Em sua essência, grandes. Traços índios em alguns. Traços portenhos em outros. O certo é que, em estudo recente depositado no museu do pantaneiro, não sei ao certo se em Campo Grande ou Aquidauna, o Tereré e o chimarrão de lá tem fama de retardar o envelhecimento. Henry Ford era proprietário de um grande navio cargueiro, que muitas vezes encostava no grande porto de Corumbá. No cais antigo, muitos barcos pequenos ficavam esperando o grande barco negro de Ford, carregado de queijos e vinhos do Chile, couro e livros de Buenos Aires. Saia de Corumbá carregado de couro e minério. Sempre quando soava o grande apito e a âncora de cinco metros era erguida, o Capitão ainda se detinha a última chupada na bomba do chimarrão de Corumbá. Alguns recibos apócrifos, encontrados em Fordlândia, no Pará, informavam valores exorbitantes, pagos por grandes personalidades mundiais para ter acesso a erva de Corumbá.  Mas isto nunca foi provado e constatado. Saiu em uma série de reportagens de um antigo canal francês, que hoje está sob sindicância do governo. O certo é que, dentro de um livro de poemas sul grandenses doado por (assinado à lápis), encontrado em Buenos Aires, na biblioteca o Ateneu,  continha um maço de ervas mate.
 O certo é que Corumbá é dividida em duas cidades, que para mim são três:
A primeira cidade é contemporânea, chamada de alta; com coisas, pessoas, lojas (um centro comercial comum, em desenvolvimento, com alguns prédios) que não tem nada de diferente. No entanto, perdido em Corumbá, existem ruas místicas, de lajeados mágicos e prédios de cinquenta anos que ostentam um tempo especial, que não perderam a história, que ainda tentam reluzir, e portanto, tem vida. São ruas sempre com árvores muito antigas, de muitas histórias e uma grande fábrica de gelo abandonada, onde ainda se exala uma grande fumaça branca, sempre na festa de ...(informação dada por um senhor que pediu uns trocados para guardar meu carro). O famoso Beco da Candelária deve ser visitado, pois dá margem à antiga vila italiana e a esta já citada fábrica de gelo, que já foi a maior do Brasil. 

A segunda cidade é a do “outro lado”; controlada mais pela fronteira do que pelo Brasil brasileiro. É nela que minha memória, repousada depois de quatro anos, ainda se assenta nas seguintes reminiscências:
1.       Um primo da Helem falando que lá se mata pelo carro; (lá é a cidade da Bolívia de Puerto Suárez)
2.       A travessia, com o já calejado golf preto, na divisa seca de Corumbá / Puerto Suárez
3.       Época de Mc Serginho e o famoso “creu” estampado em dvd´s piratas;
4.       Um totem especial da sorte que comprei e encontra-se depositado em meu relicário;



A terceira cidade é a chamada de baixa, mas que eu prefiro chamar de porto. Olhando-a, não podemos afirmar que já fora o que foi. A âncora fictícia exala as profundezas do que era um grande rio. Hoje, desprotegido, o Rio Paraguai flui calmo, uma sombra de outras épocas. Muitos barcos pequenos, de pescadores, já navegaram por estas águas de sotaque latino; muitos transatlânticos repousaram seus cascos sob seu leito, carregados de perfumes, couros, alimentos e ouro, vindos de longe, de rios portenhos, de Cárceres, de Costa Marques, dos entrocamentos do rio Guaporé, vassalo do Rio Paraguai pela Bolívia e Brasil. Solano López banhou seus soldados nestas águas, que escalpelaram soldados brasileiros, encurralados pelos soldados Paraguaios.

Corumbá foi o cenário de uma grande batalha; dominada pela força Paraguaia, sucumbiu diante do porto atolado das tropas de Solano, invadindo a Casa Vasquez, as casas de jogos e importadoras, os mais de 30 bancos mercantis que existiam até o início do século; dos vitrais ao luxo Francês, ao pastiche da arte Decó, às construções e vida beradera em “Art Noveau”; respirando o luxo dos casarões, passando ao largo ou ao lado, ainda se pode escutar os antigos pianos, os vidros das taças e as bebidas, os mercadores entregando e vendendo couros, peças nobres de animais empalhados, festas e dinheiro escorrendo e enriquecendo o rio Paraguai, enriquecendo um lugar que hoje descansa; 
Retirada do blog http://theurbanearth.wordpress.com/tag/casa-vasquez-irmaos/


Mas no súbito do vento, pressenti a proximidade de um grande cargueiro que irá descarregar na casa Vasquez, nos antigos comércios e bancos, depositar novamente seu lastro em ouro; este Barco não virá tripulado, talvez o Barco de Poe, do seu conto “Manuscrito encontrado em uma garrafa”; talvez a grande pirata chinesa de Borges, que passou por aqui para roubar;  no antigo casarão, na esquina da avenida principal, o nosso outro lado ainda consegue ver o passado; o quebrado no muro que pretendia proteger Corumbá dos paraguaios, dizimados posteriormente, (sem o romantismo da guerra clássica); 




Fui embora de Corumbá com a sensação de que nada ainda está finalizado; a cidade ainda vive em minha memória e coração.




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