Rômulo Giácome
Ensaio análise produzido a partir de recortes textuais da obra e a posterior participação na Mesa Redonda Intitulada "“Crime e Castigo” de Dostoiévski: Um Olhar Jurídico, Psicanalítico e
Literário”, realizada no dia 18 de Abril, no auditório da UNESC, com a partipação dos professores Rogério Dias (psicologia), Bernardo Shimidt Penna (Direito) e Rogério Sikora (Direito).
O presente ensaio / análise
acadêmica da obra “Crime e Castigo” de Dostoiévski está estabelecido sobre a
leitura com recortes de momentos intricados e classificados pela
teoria, detidamente observados por uma voz descritiva. Nesta triangulação, a
teoria que valemos é a da Polifonia de Bakhtin, a partir de seus estudos na
obra “Problemas da Poética de Dostoiévski”, levando em conta o que Wisnik
(1989) denomina de franco processo de mixagem de sons, ritmos, textos, línguas
e índices sociais.
A base do conceito de Polifonia
de Bakhtin, mais detidamente na obra de Dostoiévski, concentra-se na questão da
independência das consciências discursivas, ou consciências / vozes que se
mantém em perfeito equilíbrio, sem uma dominar a outra, estatizadas e
neutralizadas, mas não sem amplitude, apenas em uma relação
de independência chamada de “equipolentes". Elas têm suas próprias forças
e amplitudes e aparentam estar acima da própria voz autoral, sussurrando em
cada palavra.
Uma forma de materialização desta
polifonia é o diálogo; principalmente os diálogos e cenas de “Crime e Castigo”,
que carregam fortes traços de singularidade de cada consciência discursiva,
apresentando-se incompletas e sem necessidade de completude, tornando a obra
ainda mais interessante e rica.
Abaixo
seguem alguns diálogos escolhidos à luz deste introito metodológico.
Parte I - Capítulo II – Raskólnikov é nosso protagonista.
Estruturalmente “Crime e Castigo” é simples, com um plano fabular cronologicamente
curto. A trama se passa em menos de 04 dias. O mote central do enredo pode ser
estruturado da seguinte forma: Um epicentro factual no assassinato e depois a
construção de uma “culpa” a partir da(s) consciência(s).
No entanto, a riqueza
dos personagens é incontestável e inestimável. São profundos e vivos,
humanizados ao extremo. Talvez por dois fatores: a) a abordagem psicológica de
um narrador infra-onisciente neutro, mas de visão dinâmica e dimensionável. b) E
ainda pela força dos diálogos. Estes são a matéria especial desta pequena
resenha. Ricos e polifônicos, exalam uma tensão especial e, principalmente, uma
concatenação lógica do raciocínio, preciso e claro.
Neste capítulo, Raskólnikov desse
aos baixios, buscando nas tabernas do mercado do feno, local pobre e
desestruturado, um local para repousar seu transe humano, sua negação à vida e a
si mesmo. Lá ele se encontra com Marmieládov, um ex-funcionário, em estado de
miséria, bêbado, grande e galhofo. A eloquência de Marmieládov tem o tom do
desespero e da avidez. Neste encontro a narrativa coloca o protagonista de
fronte ao seu futuro, pois é essencial os personagens e o desenrolar da trama
por sobre eles. À frente surgira a pequena e frágil Sônia, com seu título
amarelo de prostituta, que praticamente sustenta a família de Ekaterina Ivânovna, esposa de Marmieládov, ríspida e
nervosa esposa, que em sua situação de tísica, prolifera e vocifera ódio do
marido. (no futuro veremos que não é bem assim, pois Marmieládov havia tido uma
segunda chance, tinha arrumado novamente emprego, estava sendo bem tratado, mas
perdeu a linha e voltou a beber, gastando os últimos copeques).
Parte I – Capítulo
III – Raskólnikov recebe a carta da mãe. Esta carta propõem um novo tom
narrativo e estilístico na enunciação. É um monólogo estruturado por uma outra
voz, sobreposta à voz narrativa (segunda consciência). No entanto, fica
definido um diálogo polifônico na medida em que a carta da mãe de Rodka (apelido
de Raskólnikov ) simula que prevê uma situação de enunciação virtual, ou seja,
a mãe escreve imaginando o comportamento do filho ante à informações
prolatadas, e antecipa recursos enunciativos, como pausas e comentários. Em tom
amedrontado e respeitoso, escamoteado, a carta conta a vilanice contra a irmã,
fato que fez com que toda uma cidade ficasse contra sua irmã Dúnia. Acusada de
ter um caso com seu patrão, Sviridov, Marfa, esposa, a difamou. Também nesta carta
irrompe um outro ponto conflituoso: o casamento de sua irmã Dúnia, concedido
pela mãe sem a anuência de Rodka;
Parte I – Capítulo VI
– O diálogo entre Mitka e Kotch, na porta de Alióna, buscando trocar alguns
pertences por dinheiro, inocentemente, sem saber que trancado dentro da casa Rodka respirava sufocado, com a machadinha em punho, e os corpos de Alióna e Lisavieta
atrás de si. Raskólnikov já tinha assinado sua sentença psicológica pelo
romance afora: a culpa pelo assassinato. Aqui é notório que o Crime impetrado
por Rodka é o divisor de águas da obra; a partir de então, os elementos
psicológicos que compõem a riqueza do sacrifício do “réu” passam a agir,
trespassando pela moral, ética e religião, em um diálogo franco com si mesmo;
Parte II – Capítulo I
– Entremeios ao diálogo de Nikodim e Iliá Pietróvich, Raskólnikov desmaia. (o
conteúdo do diálogo era o seguinte: argumentavam sobre o assassinato, faziam um
circuito lógico do acontecido muito próximo da verdade real. Um dizia que o
caso estava escuro. O outro afirmava que estava muito claro. Rodka escureceu em
um desmaio comunicativo).
Parte II – Capítulo
IV – A oposição de ideias entre Rodka e Pietróvitch, o futuro cunhado e, agora, desafeto. Um diálogo perfeito. Cada enunciado talhado por Rodka parece
oriundo de uma outra narrativa, de outro autor, que se engendra nesta
narrativa, consolidando a polifonia.
Parte III – Capítulo
II – Raskólnikov analisa a carta que Pietróvitch enviou à irmã e mãe. Em seu intertexto, a carta passa a ser resolvida à luz do personagem, figura ficcional,
que analisa o estilo da escrita e o fato desta carta ser uma prova da “arrogância”
e “perigo” que constitui o noivo de Dúnia (Irmã). Nesta argumentação, do estilo
dentro do estilo (o estilo da carta, dentro do limiar do estilo de escrita
advogatícia, dentro do estilo de análise de Rodka) o seguinte trecho é loquaz:
“Processuais? Sim, é isso: processual, de advogado. Nem demasiado vulgar nem
demasiado literato, advogatício”. Diz Raskólnikov. Em suma, é ressaltada uma
consciência dentro da consciência, sem nível hierárquico, que analisa a própria
astúcia da narração em criar uma micro-narrativa dentro da narrativa principal
com estilos e categorias de escrita próprias.
Parte III – Capítulo
V – Capítulo importantíssimo; nele se desenvolve a tensão dialógica entre Porfíri,
o juiz de instrução, e Rodka com seu amigo Rasmukin; várias camadas de leitura
poderiam nos permitir entender diferentes níveis ou ângulos da percepção de Porfíri
sobre a culpa de Rodka, senão do nível de conhecimento de Porfíri quanto a
participação de Raskólnikov no assassinato; cada palavra, cada sentença forma
um estranho quebra-cabeça de intenções que podem dissipar sentidos sobre o grau
de onisciência do investigador; no entanto, tais discussões acabam por
ancorar-se na tese de Rodka sobre os homens
extraordinários. Eis o epicentro do Capítulo V; a dissecação moral e
política da visão do protagonista sobre a culpa, a culpabilidade e a pena; ou
seja, se matar por algo maior não está imune da culpa, isento da culpabilidade
e assim, descriminalizado na pena; como nota final, é importante perceber a
junção da fala e do pensamento do protagonista, ambos em articulação;
Parte IV – Capítulo
II – Capítulo que demarca a cisão entre Dúnia e Pietrovicth, a aparente
vitória de Rodka; belíssimo diálogo polifônico, marcado pela transposição de
conteúdo e forma enunciativa (sinais de pontuação); o uso de Dostoiévski das
aspas para a referência ao pensamento é uma forma gráfica de separar, ainda
mais as diferentes ações, manipulando e dessincronizando o que se “pensa” do
que se “fala”;
Parte IV – Capítulo
IV – Uma verdadeira catarse irrompe do diálogo polifônico entre Sônia e
Rodka; a evolução entre o discurso de Raskólnikov, mas a comoção de Sônia, o
ambiente, e o texto bíblico, em uma profusão de sensações e emoções, compõem o
diálogo entre a passagem que Jesus ressuscita Lázaro; o equilíbrio de forças
antagônicas, mas que compartilham a mesma estrutura: a moral religiosa e a
moral idealista, confrontada com a moral da sobrevivência e do existencialismo.
Talvez a epifania do discurso polifônico, onde ambas as consciências, díspares,
autônomas e fortes, em caráter contencioso, dialogam de forma ímpar.
Parte IV – Capítulo V
– O grande confronto intelectual de dois astutos e insidiosos dominantes das
palavras e das ideias: neste confronto, Porfíri consegue, por sobre o
desequilíbrio emocional do protagonista, uma quase/confissão; surge um próprio
terceiro personagem, que quase materializado, atua sobre o estado emocional de Raskólnikov:
a Culpa. Ainda é
possível descrever dois grandes momentos desta grandiosa obra:
Parte V – Capítulo I – O grande fato da denúncia de roubo contra
Sônia, que desmascara Iujin;
Parte V – Capítulo II – O grande festim e Ekaterina; o banquete
envolvido em uma carnavalização; a loucura, o alimento farto e a insanidade;
Bem, esta pequena análise /
recorte buscou atuar sobre a leitura da obra sobre recortes / resumos de alguns capítulos. Nosso olhar é apenas de capitulação da possibilidade de aplicação da teoria polifônica, ressaltando um percurso de leitura.
Por fim, é crível que uma obra de arte, principalmente aquelas clássicas,
devem sofrer a atuação consistente da leitura crítica, culminando em uma
produção que gere conhecimento e valorização de seus artifícios. Só assim
teremos a literatura perene em nossa modernidade.
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