O ROMANCE “A CONSCIÊNCIA DE ZENO” E O MAL ESTAR DA CIVILIZAÇÃO
Conheci a obra “A consciência de
Zeno” a partir de uma publicação da revista Bravo, que listava as 100 melhores
obras da humanidade, simplesmente. E sou fascinado por listas, logo as palavras
“psicanálise” e “narrativa” motivaram-me abruptamente a ler esta obra, em algum
momento. E garanto que não perdi meu tempo, na verdade, já reli. Digo o porquê.
As credenciais dessa obra já se
bastam, caso a alguém for relevante. Ela foi publicada em 1923, logo após a
primeira guerra mundial, por Italo Svevo, na verdade um pseudônimo do italiano
Aron Ettore Schimitz. Considerada pela crítica uma obra prima, dialoga fortemente
com a chamada narrativa de Trieste. Quase uma escola, onde pelejava, também, um
James Joyce jovem e cheio de intensidade. Muitos dos músculos narrativos e das
técnicas narratológicas objetivas tiveram retoques nesse ambiente. Joyce e
Svevo eram amigos e trocavam leituras. Joyce leu “A consciência de Zeno” e
ficou espantado do que havia para dizer sobre o fumo. Na verdade ele
questionava a força narrativa de Svevo, em construir um personagem tão forte e
esclarecedor diante de um motivo tão banal. Parar de fumar.
Este mote sustenta o livro. Nosso
personagem, narrador em primeiríssima pessoa, possui sofisticadas técnicas de
apresentação dos fatos, que hora mostram-se límpidos e claros, ora mostram-se
cravejados por sua própria leitura e ordenação, atrapalhando a análise externa.
Na verdade, a provável cura de Zeno é sua própria aplicação do método
psicanalítico, onde ele justifica-se sempre do que fez em vida, das coisas
ruins que provocou, julgando sua própria moralidade.
Mas seu julgamento moral é muitas
vezes parcial, não permitindo que ele se descubra o vilão. Sempre, no final,
sua razão acoberta a suas descobertas, obstruindo que ele consiga a cura que
quer pela psicanálise, ou seja, compreendendo as causas profundas de seus
problemas com o fumo e com as pessoas. Portanto, o médico é sempre um ser estranho,
mesmo que seja parte importante no processo, uma vez que ele, doutor sem nome,
levará à cura. Então Zeno se mostra a própria cura, ou a tentativa dela,
negando o caráter eficaz da psicanálise.
Voltando à trama central do romance,
a base é a narrativa pessoal e impessoal, quando possível, do personagem “Zeno”,
que inicia um tratamento psicanalítico para abandonar o fumo. O protagonista
textualiza sua trajetória pessoal, mentalmente, narrando em detalhes alguns momentos
relevantes da sua vida, divididos no livro em capítulos principais, que
exemplifico os que mais chocaram-me como leitor: a morte de seu pai, seu
casamento e sua traição. Suas descrições minuciosas com um foco narrativo
ímpar, detalhes narratológicos e camadas e camadas de inferências nos faz ver o
mundo de Zeno, sua mente, quase que como o Doutor, ou agindo como tal, mas que
na verdade, o Doutor é o próprio Zeno, que nos leva a tentar e provar suas
afirmações.
Tenho dito, não sem certa
resistência, que as narrativas são peças vivas e que a técnica bem manipulada e
executada é como uma sinfonia, ou o canto de um tenor. São práticas exaustivas
de testes, aplicações e resultados, que criam uma mágica no ato da leitura. Um
grande enredo pode derreter nas mãos de um maestro fraco. E um enredo simples
pode transformar-se em um épico na prática de um grande narrador como Dostoiévski.
Narrar é um conjunto de habilidades que devem ser harmonizados dentro de uma performance
e uma nuance. Não perderemos, enquanto analistas, nenhum minuto lendo este
Romance.
Por outro lado, uma sombra paira
sobre a humanidade desde a sua consciência. No acender a tocha da mente, os
fantasmas da culpa, do medo e de vassalos como a ansiedade e o tédio aglomeram-se,
permeando a cultura e o nosso senso de sobrevivência mais vital. A sociedade
está doente? O homem está doente? Desde o sempre a pergunta é a mesma. Muito da
mitologia grega baseou-se nas dores da alma. Freud já havia persistido na doença
da cultura. E hoje vivemos os mesmos questionamentos. Então, qual a importância
de uma obra narrativa, com narratividade forte e objetiva, técnicas narratológicas
bem construídas, escancarar a construção e desconstrução do “eu” frente às
dores do mundo?
Este é o romance “A Consciência
de Zeno”, que merece ser lido com aquele olhar sintonizado com o nosso tempo,
com o nosso eu, com as técnicas narrativas e com o mal estar da civilização de
Freud.
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