OS PREJUÍZOS SEMIÓTICOS NO USO ATUAL DOS TERMOS “DIREITA” E “ESQUERDA”
por Rômulo Giacome de Oliveira Fernandes
O uso dos termos “direita” e “esquerda” tem aumentado exponencialmente nas redes sociais. Eles têm sido utilizados como cheque em branco ou notas falsas de moeda ideológica ao bel prazer de funções comunicativas e argumentativas próprias, e resgatam valores semânticos simplistas e perigosos. Se os termos são complexos aos olhos dos estudiosos, imagine no repertório lexicográfico de milhares de pessoas que reproduzem esses termos em replicações nas redes sociais e grupos, muitas vezes deslocados de seus sentidos semânticos e semióticos próprios.
Você sabe o que é direita e
esquerda? Com certeza sabe. Ou acredita que sabe. É necessário buscar as bases
históricas, sociológicas e filosóficas para entender mais proeminentemente essa
dualidade, quase uma dialética, que remonta o dia em que, no parlamento pós-revolução
francesa, os Girondinos liberais sentaram-se à direita e defendiam a queda da
nobreza e de suas benesses, enquanto os Jacobinos sentavam-se à esquerda e
foram considerados extremistas; na verdade, poderíamos dizer que a esquerda
nasceu dos burgueses emergentes, que assumiram uma postura política no
parlamento, combatendo os interesses da aristocracia. Não somos os primeiros a
discutir a existência ou validade dos espectros ideológicos. Autores como
Norberto Bobbio com a obra Direita e Esquerda e Anthony Giddens em Para
além da Direita e da esquerda, debruçaram-se sobre esse problema.
A confusão já começa por aí. Mas
não temos o interesse de perscrutar o difícil e infindável campo histórico,
filosófico, social e econômico. Ficaremos no campo de batalha muito utilizado
na atualidade. Qual? O campo do discurso e da semiótica. Mais
propriamente a projeção das nossas opiniões no amplo cenário das mídias
pessoais e informais, e na maior produção de informação e dados da história,
mas ao mesmo tempo na era da reprodução em massa de informação produzida por
alguns.
O uso dos termos “direita” e
“esquerda” tem aumentado exponencialmente nas redes sociais. Eles têm sido
utilizados como cheque em branco ou notas falsas de moeda ideológica ao bel
prazer de funções comunicativas e argumentativas próprias, e resgatam valores
semânticos simplistas e perigosos. Se os termos são complexos aos olhos dos
estudiosos, imagine no repertório lexicográfico de milhares de pessoas que
reproduzem esses termos em replicações nas redes sociais e grupos, muitas vezes
deslocados de seus sentidos semânticos e semióticos próprios.
Um dado interessante sobre o uso
desses termos é possível ver nos gráficos abaixo:
Percebam que a quantidade de
vezes que a palavra “esquerda” foi remetida no google coincide com a campanha
eleitoral para presidente em 2018. Entre os dias 05 e 10 de outubro de 2018. O
mesmo ocorre com o termo “direita”.
Em uma análise qualitativa na
rede social Facebook, entre os dias 20 de março a 20 de abril, foi possível
perceber que termos como “esquerdopata” e “direitista” foram
alocados no campo semântico básico que projetam a seguinte combinação:
“Esquerdopata” à “Comunismo”
“Direitista” à “Fascismo”
Essa redução terminológica pode
ser explicada pela semântica e semiótica. Quando um termo, sem explicação
lógica do emissor, é utilizado em um sentido empobrecido semanticamente, ou
seja, é classificado como um operador semiótico de valor, temos um perigo
argumentativo.
Detidamente, a construção
cultural de cada indivíduo é composta por um conjunto semântico – valorativo.
Essa combinatória sema / valor nos dará um mecanismo de explicação dos
fenômenos de uso equivocado e indevido, onde e muitas vezes o uso é acometido de
má-fé.
Vejamos o processo. Quando o
sentido semântico de um léxico não é recuperado, ou seja, não é apreendido pelo
usuário, ele busca um sentido “cultural”, que na verdade é projetado pela
“premissa” de conexão com algum sema classemático. Por exemplo, quando expressamos
o léxico “chocolate”, temos em mente um conjunto de semas próprios da nossa experiência
sensível e linguística. A cor, a forma, o gosto e a própria experiência com a
palavra (e o objeto remetido). Podemos também, a parti de uma experiência
própria com o chocolate, ancorar um “valor”. Esse valor pode e está sempre
atribuído à alguma reação “passional”. Assim, atribuo ao chocolate um valor
positivo “bom como um chocolate”. E posso também ampliar a conexão com a cultura,
ou seja, inserir um conjunto representativo. A exemplo de vincular o chocolate
com a páscoa.
Mas notem que se eu não possuir
qualquer experiência semântica com o termo e não conseguir construir seu
sentido original, seja histórico, político, econômico, como é o caso dos termos
direita e esquerda, eu vou ficar totalmente refém de um contato cultural que eu
não conheço, mas que pode ser atribuído a mim pelo grupo, família ou outra
fonte de informação e validação. Assim, eu posso conectar o termo “Direita” ao
que diz o meu grupo social, ou seja, a minha fonte confiável culturalmente. E
esse grupo pode atribuir o conjunto representativo semiótico chamado “fascismo”.
E junto com ele eu valido e pratico um “valor”, ou seja, a negatividade que
este termo histórico / político possui.
Fechando esse parênteses
explicativo. Percebe-se que esse sentido cultural pode ser certificado por uma
fonte não segura. O exemplo mais banal já foi exposto: conectar um sentido para
o léxico “esquerdopata” a qualquer espectro semântico da palavra “comunismo”.
Essa conexão é feita sem apuro
semântico e validação histórica, apenas por uma indução sistemática da cultura,
de fontes não credenciáveis que corroboram nessa conectividade. Mas qual o
problema? O problema é que essas
conexões, muitas vezes elaboradas por manipulação de informação e desajuste
semântico, vem carregadas de “valores” instituídos, não por aprofundamento do
emissor no ato da comunicação e sua provável certificação e validação positiva
da informação, mas por uma conduta assujeitada advinda de várias fontes, como a
cultura de grupos, família, escola entre outros.
Da mesma forma o léxico “Direita”
é visto de maneira superficial, sem uma projeção de seu eixo semântico
coerente, por exemplo, da sua história política, mas sim de uma conexão com a
cultura específica do usuário, que traria representação e significado para o
léxico “Direita” ao ancorá-lo com “fascismo”, no exemplo listado acima.
Percebam que existe um empobrecimento sistemático do uso lexicográfico e de sua
construção semântica.
E o perigo é ainda maior quando
entendemos esses termos, já ancorados pela cultura específica de um grupo,
sendo usados e aplicados como moeda de valor semiótico negativo, refratando
sentidos relevantes e impregnando de senso comum que muitas vezes criam
condutas violentas. A “valoração” semiótica de um termo, mesmo que no campo
aparente inofensivo da linguagem, reproduz em ações práticas uma conduta muitas
vezes perigosa. A exemplo de exageros de manifestações e formas de encarar os
valores do outros dentro dos debates.
O perigo de tudo isso é ampliado
quando temos em mente uma evolução ainda maior dos cenários e contextos de uso
dos termos direita e esquerda. Esse léxico não pode ser resumido aos mesmos
parâmetros semânticos de anos atrás. Em um panorama semiótico cada vez mais
difuso, podemos perceber que a forma como um cientista econômico, a exemplo de
Friedman, em sua obra “Capitalismo e Liberdade” (1964), utilizava o conceito de
“Capitalismo” de 60 anos atrás, mesmo que ainda operacionalmente exiba a mesma
configuração no plano econômico, já não podemos dizer o mesmo dos sentidos
atribuídos ao termo e como ele é recebido hoje, que em muitos discursos contemporâneos
tem traduzido o capitalismo de modo diferente, uma vez que a forma de ver o capital
hoje mudou.
Assim como a forma de ver um Welfare
State, de bases socialistas, não podem ser simplemente atribuídas como
aquele “socialismo” de base totalitária estatal, uma vez que muitas empresas
tem assinalado na OCDE pactos de responsabilidade social e escritores renomados
tem conduzido um outro pensamento social sobre o capital, a exemplo de Ladislau
Dowbor e sua obra “A era do capital improdutivo” (2017).
Evidente que entendermos os
aspectos semânticos / semióticos do léxico utilizado nas redes hoje é entender
muito do pensamento político, ou talvez do des-pensamento político atual. O
esvaziamento semântico dos termos empregados nos debates, como direita e
esquerda, permitem fugas perigosas a conceitos pobres e estereotipados, eivados
da cultura grupal e muitas vezes contornada para efeito de dominação. Alí o
vírus do “valor” nos leva a tensões perigosas no campo das paixões discursivas.
E o debate torna-se perigoso, pois superficial, torna-se campo fértil para
aceitação de sentidos prontos e aparentemente validados e corretos.
Vejo que nesse ponto a tendência
que temos ao hiperônimo, ou seja, termos guarda-chuva que tudo nele cabe,
exerce um fascínio pelo resumo e pela síntese, pela palavra arma ou valor
absoluto, que não permite contraposição, pois aparentam ser termos universais e
contundentes, não cabíveis de argumentação. Os campos semióticos de discussão e
novas modalidades e mídias vão ampliar caminhos até ainda não analisados,
possibilitando avanços e retrocessos nessa batalha da linguagem. Esperamos o
melhor.
Comentários
Obridada pela partilha dessa análise. Gostaria de permissão para poder divulgá-la num grupo de letras no FB.
Atenciosamente,
Ana Goulart