POR QUE LER VIRGINIA WOOLF? BREVE ANÁLISE DE “ORLANDO” (1928)
Por Rômulo Giacome de Oliveira Fernandes
O romance “Orlando” foi escrito em 1928 e materializa parte dos temas caros ao rol inovador de Woolf, como o feminismo e a liberdade de criação por e pela linguagem contemporânea. Tido como uma grande carta de devoção e amor de Virgínia por Victoria Sackville-West, poetisa com quem a autora teve um caso amoroso intenso. Considerado em si mesmo um Gênero feérico, muito do que a crítica atribui à Orlando nos ajuda a uma leitura completa.
Mas
nesse parágrafo assinalo algumas pistas e gatilhos literários e temáticos que
podem ser deflagrados para aprofundamento e que se constituem caminhos
prósperos: a crítica literária na narrativa é tema caro. É construída sobre a
figura crítica do protagonista e da relação com a criação poética, tendo como
personagem arquetípico o escritor e professor Nick Greene, por exemplo. Ele
consubstancializa a tradição, aqui entendida como limitação. Os arroubos do
poeta e os diálogos com a literatura naquilo que ela traz de limitador. Ao
tentar ensinar e construir conhecimentos literários em Orlando, cada vez mais
ele se distancia da literatura e se aproxima da vida pulsante na natureza e,
inclusive, nos animais. Um indício forte de grande discussão literária é a
eterna escrita do poema épico “O carvalho”, sendo uma esfinge e enigma para
decifrar a visão de Woolf sobre a literatura. Ainda na esteira das grandes
pistas de discussão, o caráter biográfico da narrativa, tecida sobre
acontecimentos em caráter ficcional e metaficcional, relatos e pedaços de
relatos não passíveis de documentação, prováveis de discussão e ampliados por
uma verossimilhança convexa.
Mas
a grande inovação do romance e o ponto de profunda discussão é a transformação
inopinada do Orlando em Lady Orlando.
“Espreguiçou-se.
Levantou-se. Ficou de pé, completamente despido na nossa frente, enquanto as
trombetas rugiam: “Verdade! Verdade! Verdade!” E não podemos deixar de
confessar: era mulher”
Este
acontecimento narrativo não é simplesmente um momento épico do enredo, mas um
gerador importante na trama, pois além de criar tensividade centrípeta, que transporta
as forças tensivas para o fato narrativo e o transforma em um momento épico da
trama. Também possui uma tensividade centrífuga, que projeta energia para as
extremidades, ou seja, que a força desse ato de transformação irradia mudanças
narrativas e procedimentais, como por exemplo a perspectiva enunciativa do gênero
masculino, na primeira parte do livro, com a sua forma de autoidentidade,
análise dos fatos ao redor e o envolvimento amoroso com Sasha. Também na segunda perspectiva
enunciativa da outra metade do livro, sob a ótica da mulher, que agora
identifica-se como tal em vários detalhes, o seu olhar sobre si e sobre o
mundo. Seu estar no mundo agora assume a visão feminina, mas no íntimo, elas se
convergem.
O
fato semiótico é que os dois enunciadores, divididos em gênero e sob todo o
filtro que isso traz para si, o masculino na primeira parte e o feminino na
segunda, possuem limites bem nítidos em uma primeira análise: vejamos, Orlando
namora, tem desilusão por Sasha, é desejado e deseja; Lady Orlando é sensual e
tem a noção disso, deseja e é desejada. Mas em lady Orlando uma autocrítica de
viés masculino emoldura o ser feminino, como a relação com o vestuário e os
costumes que limitam a mulher na época.
Por este
deslocamento de “consciências” narrativas dos enunciadores, que podem migrar de
corpos e transpor as questões do masculino para o corpo feminino, as linhas que
pareciam determinadas e nítidas agora podem ser difusas, e não mais é possível
evidenciar as diferenças.
Teoricamente
isto acentua-se quando pensamos no enunciatário profundo, aquele que buscamos
na base da problematização narrativa do ser e sua relação actancial com o mundo
e as coisas. Este enunciatário está além gênero e pode dialogar do plano
superior em que está, pois está livre de todas as lentes e filtros do feminino ou masculino. Ou seja, é uma fusão, um terceiro porto. Que configura-se desde ter a total liberdade de viver o que se tiver que viver, até limitar-se a
amar alguém, Shelmerdine, e a esperar esse alguém para viver.
Isto
se dá em razão do aprofundamento do enunciatário nas camadas mais internas da
narrativa, ou seja, nas potências mais tensivas entre o gênero masculino e
feminino, bem como os desdobramentos sensíveis que isso efetiva. Por trás de
tudo existe uma voz que contempla as problemáticas do ser homem e mulher e o
que deveria a ser problematizado, antecipando gerações. Dito de outro modo, é
uma das discussões mais profundas e sensíveis que Woolf proporciona, pois
emulado por um personagem bem construído, é possível visualizar em milhares de
ângulos e perspectivas, pela dimensão interna do ser, a questão dos gêneros na
literatura.
Mudando
o tom da análise, a narrativa emula um gênero biográfico que busca âncoras e
referências em histórias sem fatos e legitimações; o andamento é sempre cortado
por cenas inopinadas, que surgem do acaso, e que no andar da narrativa aparecem
de sopetão, criando uma força intensa de decidir o próximo fato com energia e
confiança, como o fato de viajar para Turquia e morar no meio de uma tribo
nômade. E quando a cena necessita surgir e tornar-se total, o visual é
contemplado como parte emoldurada da informação, acrescentando silenciosamente
o que precisa e que não é possível narrar. Essa iconização no modo de tratar as
paisagens (como sua casa de morada que, entre muros, viveu por séculos), ou o
dia que Londres ficou tão fria que congelou Rio Tâmisa, são cenas potenciais de
riqueza iconográfica.
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