Resenha “ADMIRÁVEL MUNDO NOVO” LIDO EM 2022 – CONFUNDINDO A DIREITA E A ESQUERDA
Por Rômulo Giacome de Oliveira Fernandes
Esta obra clássica, apresenta uma ficção social, com avanços científicos de controle e estabilização civilizatória, questionando regimes autoritários por meio de uma sociedade que vive sem religião, ciência e arte.
Adous Ruxley
nasceu em 1894, na Inglaterra, e publicou “Admirável mundo novo” em 1932. Inspira-se,
obviamente, no pós-primeira guerra, que disseminou regimes e ideologias totalitárias
e autoritárias nas décadas de 30 e 40.
Em um mundo
controlado, estável e civilizado, as pessoas visam uma felicidade condicionada,
substituindo o pensamento pelo prazer absoluto, felicidade essa gerada pela ausência
de preocupação, sentimentos, paixão e família.
Penetrar na
obra pelo viés da política e da organização do estado condicionador e limitador
é o caminho mais fácil, e talvez a cilada mais óbvia. O que facilitaria
encaixar qualquer teoria política e ideológica, seja de esquerda e direita nos
modelos críticos; desde o anarcocapitalismo na medida em que existem distopia e
exclusão de grupos que não se encaixam (selvagens), até a gestão absoluta do
indivíduo, começando antes do nascimento (controle biológico e genético pelos
bocais) até uma educação hipnodética, condicionadora, que nos levaria ao comunismo
como princípio (cada um pelo todo, e o todo por cada um).
No entanto, a política é uma epiderme desta obra de caráter filosófico / moral. O problema está embaixo da pele. O motivo principal da estabilidade dessa civilização, que aparentemente nos permite inferir que é apenas uma fração da população mundial, grupo seleto, é justamente a castração de qualquer elemento, “humano, demasiadamente humano” (como diria Nietzsche).
A castração
dos sentimentos, instintos, afetos, e qualquer outra manifestação basicamente
humana e desestabilizadora, (que cause problemas ao tecido social); como dor,
tristeza e sofrimento, bem como a maneira sutil e cabal que mantém esse
controle, resistência e amortecimento das paixões humanas (encaradas como
danosas à civilização), é pela felicidade. Isso mesmo. Não simplesmente pela
violência, como seria óbvio pelas ideologias comunistas ou fascistas de então,
mas impetrando uma ditadura da felicidade. Todos devem ser felizes e
para isso qualquer elemento psicológico, físico, genético ou filosófico que
elimine essa máxima, deve ser coibido e exterminado. Uma fina ironia e de atual
aplicação.
Vejamos como
funciona: o sofrimento natural de não ter recursos ou não nascer em uma classe
abastada, faria com que um indivíduo normal tivesse problemas ao trabalhar em
funções penosas e insalubres. No entanto, via de um controle genético, nascem
crianças ipsoles ou deltas, expostos ao fogo no ato da concepção
genética (para trabalhar em fornalhas por exemplo) ou reduzidas as porções de
oxigênio para reduzir a formação cerebral e reduzir a inteligência. Assim, você
já nasce para efetuar certas tarefas e nunca irá sentir qualquer forma de vazio,
pois geneticamente você foi moldado para isso. Os Alfas são a elite da elite,
concebidos para funções mais exigentes e capacitadas, o que os levam a estudar
mais e cuidados diferenciados.
Mas o controle
genético não consegue conter toda a fagulha de humanidade que existe dentro da
nossa espécie. Então para extirpar todo e qualquer possibilidade de
desequilíbrio, existe o condicionamento educacional, as repetições a lá Pavlov,
milhares de vezes citados mantras nas cabeças das crianças “não devemos viver
sozinhos”, “usou, gastou, comprou outro”, além disso os choques elétricos ao
pegar em livros e flores ou visitas às casas mortuárias para eliminar afetividade
frente à morte.
E ainda não é
tudo. A exposição afetiva profunda é totalmente eliminada. Sem família (os
métodos de concepção são todos laboratoriais). Pai e Mãe, irmãos, esposas.
Todos podem relacionar-se sexualmente com quantos e quantas quiserem e puderem.
Neste ponto um caráter ético dessa civilização fica evidente e é descrito
textualmente na obra: quanto mais o sexo e o prazer fácil, menos preocupações e
questionamentos políticos e sociais. E a chuva de dopamina não para. Chicletes de
hormônio sexual, vapores de perfumes, cinema sensorial emulando prazeres
físicos e tudo o mais que contemple a perfeita e incisiva felicidade artificial.
Ou não? Mas, de tudo ainda, caso esse ser civilizatório ainda estiver instável,
causando problemas à ordem social, existe o “soma”. A droga que mantém a
ordem, o prazer e a felicidade suprema.
Então: O que
se quer mais? De onde vem essa natureza humana de insatisfação? E nesse ponto a
trama traz à tona o “selvagem”. A voz que irá discutir com o grande
administrador sobre esse mundo falso, concebido em uma teia de prazeres e
controle. O selvagem constitui a voz opositora do desequilíbrio, principalmente
pela exposição à dor. A dor acaba por ser a força oposta e combativa à ditadura
da felicidade. E essa dor irrompe desde a vida dura do selvagem, na região do Malpais,
onde ele sofreu os impactos de ter sido filho de uma mulher do mundo novo
abandonada pelo amante. Também do ciúme da mãe, das mazelas e dificuldades de
sobrevivência. Mas já no mundo novo, o selvagem também é exposto a dor, da
perda da mãe e posteriormente a dor inerente, aquela oriunda da existência
humana e potencializada pela literatura e fé. Munido da obra completa de Shakespeare
e de toda a dor do mundo, o selvagem tem um dos diálogos mais completos e
esclarecedores da obra com o administrador Mustafad; debate esse que
desenha os dois modelos de confronto dor x felicidade. Mas nesse ponto ele já
está predestinado a sentir a dor física, a violação completa da sua integridade
enquanto descontrato social, enquanto manifesto de extermínio à oferta abusiva,
mentirosa e impositiva da felicidade.
Já aqui é
impossível não pensar que toda a forma abusiva e invasiva de controle de tudo
que nos é humano e natural, inclusive nossos transtornos, dores e insatisfações
é obra mais grosseira de qualquer cultura social ou civilizatória. Mas é
inegável que qualquer tentativa desse pseudo controle, seja usando qualquer aparelho
ideológico (educação, arte, propaganda) ou coercitivo (polícia, direito, armas)
é eficaz por algum tempo, mas como uma luz tênue, uma semente invencível e
incontrolável, prospera demoradamente, como um vírus, até contaminar o sistema
autoritário, apodrecendo-o dentro do seu ciclo, até sua destruição. O que não
garante que virá outro. Mas que mostra o quanto a natureza humana é incontrolável,
para o bem e para o mal da sociedade.
Existem obras que iremos ler e aquelas que devemos ler. Essa é uma delas. Junto com Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, e 1984, de George Orwell formam uma trinca de obras distópicas e atuais, pois tratam de temáticas ideológicas que não se exaurem em essência. Importante ler essa obra hoje e perceber que em essência as questões são sempre as mesmas; sobre poder, ordem, controle e prazer.
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