Resenha “NUNCA DEIXE DE LEMBRAR” UMA OBRA DE ARTE ESCONDIDA NA NETFLIX - A SOBREVIVÊNCIA DA ARTE NO NAZISMO E COMUNISMO
A arte na época no Nazismo Alemão e a transição com o Comunismo. Na esteira da Arte Degenerada à produção pelo coletivo. Das políticas de extermínio vistas em seu micro à tomada da Alemanha pelos soviéticos. Um filme épico, de confronto da história, do indivíduo e da arte.
"Nunca
deixe de lembrar” é uma produção alemã, dirigida por Florian
Henckel Von Donnersmarck., o mesmo diretor de “Vida dos Outros”
de 2006, ganhador do Oscar de filme estrangeiro, mas também do polêmico e não
tão bem aclamado “O Turista” de 2010. A fotografia é de Caleb
Deschanel, que consegue captar muito bem o cromatismo da pintura
e a semiótica visual dos ambientes. Cenas e fotos belíssimas de campos, paisagens
e momentos íntimos dos personagens (destaque para a cena do bombardeio de Dresden).
As três grandes fases do filme têm particularidades de cor, temperatura e
composição de cena: no primeiro momento, singularizando o sensual e ingênuo,
com o drama da fase de Kurt (futuro pintor) e sua tia Elisabeth.
No segundo momento, com cenas mais fechadas e claustrofóbicas, a sensação de
medo e tensão provoca uma semiótica cromática específica, traduzindo-se na
temática e fatos do roteiro muito específicos do casal Kurt e Ellie, confrontados
com a figura forte e secreta de Seeband (médico e
pai de Ellie). Por fim, a última parte do filme, quase uma genealogia da
arte e da consolidação da mente de um artista, com uma formação visual de mais
amplitude, destacando as referências e formatos visuais dos museus e galerias,
espaços abertos da Berlim Ocidental.
Como
citado o filme estrutura-se em três grandes partes, ao longo de suas mais de 3
horas de duração. Cada parte está constituída sobre as tensões básicas dos personagens,
mas também exposto à argumentação histórico / cronológica e ao atravessar da
estaca ideológica de sistemas políticos como o Nazismo e o Comunismo Soviético.
Claro, condensando aspectos da arte de cada momento, seus traços pictóricos,
cores e temáticas, bem como experimentalismos (auge na Berlim Ocidental).
A
primeira parte molda-se pela relação entre o artista Kurt com a sua tia
Elisabeth, uma relação belíssima, que inaugura pequenos detalhes da composição
visual, dos Flashs de provável diálogo com a loucura, mas também com uma
relação aberta de apropriação da expressão artística como forma de discutir a
existência (por exemplo, na cena do museu, onde a exposição de arte
degenerada é uma mostra do desvio de caráter genético, uma vez que o clássico seria a
solução ao anormal e não natural, do equívoco da anomalia). Esta ideologia pregada
pelo nazismo em seus primeiros e últimos momentos, tão bem explorada pelo brilhante
e definitivo documentário “Arquitetura da destruição” (1989, Peter Cohen) coaduna com a premissa da raça perfeita, que vem diretamente do ocultar a loucura ou outra
patologia, expõem de modo aberto a política genocida frente a qualquer um que
apresente dificuldades mentais ou motoras. E fruto dessa política de execução
sumária a trama explode seu ponto conflitivo máximo, a partir da deflagração do
desfecho de Elisabeth e o declínio do império Nazista, onde Berlim é tomada
pelos soviéticos. Indico muito observar esse momento político histórico, da
tomada de Berlim pelos comunistas soviéticos e o choque cultural da dominação vista
de modo micro, tanto pela cena do médico Seeband salvando
a vida do bebê e esposa do general, quanto da absorção das famílias alemãs, a
favor ou contra o nazismo, em como elas são inseridas na nova sociedade ocupante.
A
segunda parte do filme já trata da ocupação comunista e o embate cultural
ideológico é evidente, exposto na forma de encarar a arte: vista de modo
coletivo e não individual. Sempre um professor e uma escola de arte, que
introduz o protagonista Kurt no contexto
da produção e de toda a teoria artística do momento ideológico. Mas o ponto
nevrálgico desta parte é a relação do pintor com a namorada, e a família dela,
principalmente sob o olhar frio e impossível de deslocar do passado da primeira
parte e o problema da personagem Elisabeth, que
pode e aparenta ser deflagrado a qualquer momento. Sob a sombra dos segredos da
primeira parte, conectados pelo agora sogro e então médico da tia, o roteiro
elenca pedaços lógicos de cenas curtas e longas, que concatenadas montam a
moral nazista do médico, ações que explicitam o fanatismo nazista e o júbilo
pelos tempos áureos do poder. É uma parte longa do filme, que por muitas vezes
pode ser sobre segredos, amor e aceitação, mas esconde algo mais; os efeitos nocivos
dos regimes autoritários e embebidos pelo poder da violência e moralidade
viciada, os pequenos impactos mentais dessa loucura de pacto nocivo de poder
nazista, que explode na própria pele, quando o pai faz um aborto na filha por não
querer a contaminação do suposto sangue puro.
Neste
parágrafo importante ressaltar um pequeno detalhe desse aspecto imaterial e quase
sobrenatural das ameaças ideológicas. A mãe de Elisabeth e avó do pintor Kurt
vai até um médico consultar a filha, e já sente um certo temor de problemas em
relação a isso. O detalhe do bóton nazista do médico inspira um clima de
tensão, de improbabilidade de qualquer ação humanitária ou até mesmo de bom
senso por parte de alguém que está embebido pela ideologia nazista. A cena dirá
por si própria.
Por
fim, a parte final precipita a construção da mente do artista que iria se
tornar Kurt. Inspirado na história real do pintor Gerhard
Richter, o ponto lógico estético seria o abandono da corrente do
coletivo (tanto do nazismo quanto do comunismo) e a busca do eu como forma de
expressar sua arte, que ele encontra apenas na Alemanha ocidental (cruzando o
muro). Mas também a formatação de sua arte a partir do próprio relacionamento consigo,
com seus pensamentos, traumas e relacionamentos. Um radiograma nítido da
mudança estética projetada pela mutatis enquanto ser humano, talvez. Mas
o flerte com a loucura é sempre demarcado, seja pelas experiências com as telas
em algumas técnicas inovadoras, seja pela expressão do mínimo intimista, ou
seja, apenas pelo elogio à loucura, feito na repetição da cena final dos ônibus
já executada pela tia. E assim ele se torna um pintor aclamado e bem-sucedido.
O que seria a biografia de um pintor de sucesso que sofreu todas as sanções de
regimes totalitários, como assim o foi Gerhard Richter.
Mas acredito que o que ficou do filme não foi somente isso. Ficou uma sombra
perpassando. Um vento de ameaça.
“Nunca
deixe de lembrar” deixa no título a pista da força sobrenatural do que está
imposto na película em suas mais de três horas de bela fotografia e montagem,
além de grandes atuações. Deixa a ideia de que sempre devemos nos lembrar do
que aconteceu em todo amplo e profundo espectro totalitário e alucinado de
projeto de poder e supremacia racial. Seja nazismo, fascismo ou comunismo. Em
cada canto do filme exala o medo e a áurea de que em algum momento “isso” pode
voltar, o inominado, o inconcebível ao ser humano, mas tão conectado a ele.
Nunca deixe de lembrar é também sentir medo, e agir, para que nunca as coisas
voltem nos termos em que foram deixadas no passado. Ou seja, nunca deixe de
lembrar como forma de proteção. Belíssimo filme, uma obra prima no momento
certo.
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